Por Julia Sena
Era março de 2021, cerca de um ano após o início de um dos períodos mais sombrios do século XXI. O Brasil vivia um dos auges da pandemia de Covid-19. Foi nesse cenário que o tio de Tainara Silva, seu Antônio, começou a sentir os primeiros sintomas. Os dois moravam no mesmo quintal, em Sorocaba, o que possibilitou que a menina acompanhasse de perto as dificuldades.
Segundo Tainara, o primeiro sinal veio discreto, ele já não reclamava do cheiro dos fortes produtos de limpeza usados pela esposa. Naquela mesma noite, a febre ardia em sua pele e ele foi levado ao posto de saúde. Voltou com antitérmico, um receituário e a recomendação de isolamento. Os dias seguintes pareciam melhores, a febre baixou e as dores de cabeça cessaram. Depois do curto período de bem-estar, vieram a tosse e a falta de ar, ainda em pequenas quantidades, porém incessantes. Dessa vez, Antônio se recusou a ir ao posto de saúde, segundo ele, a espera era longa e as soluções, ineficientes.
Tainara conta que o tio já havia guardado há muito tempo um miniestoque do chamado “kit Covid”, um conjunto de remédios sem eficácia comprovada, como hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina. Um ano antes, inclusive, chegou a consumir os medicamentos como medida de prevenção à doença. A menina não concordava, mas era muito nova para se impor diante da convicção do tio.
Após tomar os remédios, Antônio realmente se sentiu melhor, conseguia realizar as tarefas cotidianas sem muitos impeditivos, além da “moleza” habitual que uma doença pode causar. Mas durou pouco. A tosse voltou mais forte e a falta de ar se tornava cada vez mais insuportável, cada vez mais próxima da sensação de falta total de respiração.
O que aconteceu foi que a cloroquina, a azitromicina e a ivermectina que seu Antônio consumia acabaram mascarando a doença por algum tempo. Sem os tratamentos necessários e diante de sua irredutibilidade quanto a uma possível internação, o quadro avançou de maneira desenfreada. Impossibilitado de tomar decisões por si só, o vendedor de móveis, de apenas 54 anos, foi internado, mas era tarde demais.
Irresponsabilidade
Dois anos depois, em 2023, o mercado global de wellness movimentou impressionantes US$ 6,3 trilhões e deve crescer 7,3% ao ano até 2028, segundo o Global Wellness Institute. Os números refletem o apetite global por soluções que prometem saúde, felicidade, energia e longevidade. Mas, nesse mar de promessas, nem tudo o que se vende como “bem-estar” tem respaldo científico e, muitas vezes, o que se propaga é mais perigoso do que parece. O que se vê é uma mistura de interesses econômicos, desinformação e uma relação cada vez mais frágil entre a população e a ciência.
Em um mundo em que a primeira ação ao acordar é checar o celular, não surpreende que o mesmo ocorra quando se busca informações sobre saúde. Se antes consultas médicas e leituras de artigos científicos eram etapas básicas na busca por conhecimento confiável, hoje bastam alguns toques para acessar vídeos virais no TikTok ou threads no X (ex-Twitter), que frequentemente misturam ciência com opiniões infundadas. Esses conteúdos, ainda que envoltos em uma aparência de autoridade, distorcem dados estatísticos, abusam de jargões científicos e promovem teorias sem possibilidade de teste ou validação empírica. Isso configura o que se chama de pseudociência e ela tem encontrado campo fértil justamente onde o acesso à informação deveria significar maior esclarecimento.
Um caso emblemático é o de Paloma Shemirani, de 23 anos, que morreu em julho de 2024 após recusar o tratamento convencional para um linfoma não Hodgkin, câncer considerado tratável, com até 80% de chance de cura. Influenciada por sua mãe, Kate Shemirani, ex-enfermeira britânica conhecida por discursos antivacina e teorias da conspiração, Paloma abandonou a quimioterapia e adotou terapias “naturais”, como enemas de café e dietas restritivas, sem qualquer eficácia comprovada. Sete meses após o diagnóstico, sofreu uma parada cardíaca provocada pelo avanço do tumor. O caso segue em investigação no Reino Unido e serve de alerta para os perigos da desinformação mascarada de cuidado. O drama pessoal ganhou destaque internacional e levantou um debate urgente sobre o papel das redes sociais na saúde pública.
O culto à perfeição foi normalizado, especialmente no que diz respeito à aparência. A ascensão das redes sociais e a valorização de padrões estéticos irreais impuseram um novo tipo de sofrimento, a comparação constante com corpos esculpidos digitalmente, rotinas idealizadas e promessas de transformações milagrosas. Essa pressão estética não é apenas vaidade, é uma questão de saúde pública. Muitos recorrem a dietas extremas, procedimentos invasivos e medicamentos perigosos para alcançar um ideal inatingível. O resultado é o aumento de transtornos alimentares, ansiedade, depressão e uma desconexão crescente entre o corpo real e o corpo desejado. O índice de insatisfação corporal entre adolescentes e jovens adultos tem aumentado significativamente, segundo estudos da Organização Mundial da Saúde. E essa insatisfação muitas vezes começa na infância, alimentada por filtros, comparações e algoritmos que definem o que é bonito, saudável ou aceitável.
O movimento wellness se apresenta como solução holística para o caos da vida moderna. Alimentação consciente, skincare com dezenas de passos, meditação guiada, suplementos e “biohacks” viraram rotina entre influenciadores. O problema é que, por trás desse discurso saudável, existe uma indústria trilionária, impulsionada pela exploração do medo e da insegurança. Enquanto influenciadores acordam às 4h da manhã para tomar cafés com ingredientes exóticos, gominhas para o cabelo e shots de cúrcuma, seus seguidores enfrentam o transporte público lotado e jornadas exaustivas. Entre promessas de equilíbrio e felicidade, vende-se um ideal de vida sedutor, porém inalcançável para a imensa maioria da população. Isso cria um ciclo de frustração, culpa e consumo contínuo. Afinal, se você não está se sentindo bem, é porque não está tentando o suficiente, mais um curso, mais um suplemento, mais uma fórmula.
O jornalista Carlos Orsi, autor do livro Que bobagem! e ganhador do Prêmio Jabuti de Ciência, observa que houve um aumento na divulgação de conteúdos duvidosos, principalmente com a multiplicação de influenciadores de bem-estar no Instagram e no TikTok. Segundo ele, muitos utilizam argumentos científicos de forma equivocada para promover produtos de patrocinadores. Esse grupo, afirma, tem crescido mais rapidamente do que os promotores de práticas esotéricas tradicionais. A fórmula é simples e, ao contrário dos produtos, eficaz, identifica-se um problema urgente e difícil de resolver, define-se um formato vendável (em pó, shot ou cápsula) e adiciona-se um ingrediente com nome complicado, apresentado como “princípio ativo”. Isso garante o apelo científico, mesmo quando não há evidências que comprovem sua eficácia. O marketing se apropria da linguagem da ciência para vender promessas vazias, enquanto a população segue cada vez mais confusa sobre o que é, de fato, saudável.
No Brasil, nomes como Virgínia Fonseca, com mais de 53 milhões de seguidores, exemplificam como a vida pessoal se mistura com recomendações de saúde. Por compartilhar detalhes íntimos da rotina, Virgínia cria com seus fãs uma conexão emocional unidirecional, conhecida como relação parassocial, que leva seguidores a confiar nela como se fosse uma amiga próxima. O problema é que essa confiança ignora o crivo da evidência. Virgínia divulga produtos como cápsulas de colágeno e outros itens “do bem-estar”, mas sem embasamento científico.
Ao contrário da mídia tradicional, onde existe algum controle editorial, nas redes sociais a opinião vira verdade e a propaganda vira prescrição. O próprio Orsi aponta que a falta de transparência sobre os interesses comerciais envolvidos agrava o impacto dessas mensagens, já que os seguidores aceitam recomendações de produtos ou hábitos sem questionar suas origens ou validade. A influência, nesse contexto, se torna uma forma moderna de autoridade sem preparo técnico, mas com enorme poder de convencimento.
No Brasil, a fiscalização de produtos e práticas pseudocientíficas é compartilhada entre diversos órgãos. A Anvisa regula medicamentos, suplementos e cosméticos. O Conar fiscaliza publicidade, inclusive de influenciadores. Conselhos profissionais como CFM, Coren e CRO supervisionam condutas éticas de profissionais de saúde. Além disso, órgãos como o Procon e o Ministério Público atuam na defesa do consumidor. Apesar disso, a eficácia dessa regulação é limitada. Muitos suplementos são registrados como “alimentos”, o que garante a segurança, mas não exige comprovação de eficácia. Orsi afirma que a Anvisa poderia ter um papel mais ativo na fiscalização de conteúdos que violam suas normas, mas que, para isso, a agência precisaria de uma estrutura muito maior do que tem hoje. Também é necessário reconhecer que a responsabilidade sobre o conteúdo das plataformas digitais ainda é uma zona cinzenta. O mesmo algoritmo que prende o usuário à tela também espalha desinformação em massa. As empresas de tecnologia, que controlam o que aparece no feed dos usuários com base em engajamento, raramente são responsabilizadas pelo conteúdo que promovem. Lobbies poderosos atuam para impedir regulamentações mais rígidas, e o controle ético daquilo que é veiculado como publicidade disfarçada de conteúdo segue sendo ignorado.
Para reverter esse cenário, é essencial investir em alfabetização científica desde cedo. A escola precisa deixar de ser um espaço onde se decoram fórmulas prontas e datas de exames e se tornar um ambiente em que se aprende a pensar criticamente, a questionar fontes, a interpretar dados e a entender o funcionamento da ciência. A mudança precisa vir de baixo, com educação, e de cima, com responsabilidade de quem lidera. Orsi explica ainda que o desafio é ainda maior quando o próprio Estado e universidades endossam práticas sem respaldo científico, como a homeopatia no SUS ou cursos de reiki em instituições de ensino superior. Ele considera que Isso mina a confiança na ciência e abre espaço para o crescimento da pseudociência como alternativa viável. Quando a exceção vira regra e a opinião vale tanto quanto a evidência, a sociedade perde sua bússola.
Na era da influência ser influenciado não é opcional. Mas é possível escolher de quem se é influenciado. O bem-estar verdadeiro não se vende em cápsulas, não cabe em vídeos de 15 segundos e, sobretudo, não existe sem ciência. Enquanto não reconhecermos isso, seguiremos, ironicamente, mais doentes do que nunca.