A nova rotina em meio à pandemia de Covid-19 não está sendo fácil e aprender a lidar com isso tem sido um processo gradual. Mais do que a responsabilidade de se precaver para não atingir os mais vulneráveis, é preciso ter consciência para identificar situações que representam privilégios e reconhecer que a vulnerabilidade não está ligada somente à saúde das vítimas, mas às desigualdades em que elas estão inseridas.
Quando se pensa que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica, cuja patroa, além de não considerar necessária uma dispensa remunerada para o isolamento, também não informou que poderia estar contaminada pelo vírus, fica evidente que as complicações da doença têm endereço e alvo certo. Entretanto, tem sido comum o discurso de que “estamos todos no mesmo barco”. Realmente, o vírus pode atingir a toda e qualquer pessoa. Mas a realidade é que ele vem sendo muito mais danoso para as pessoas de baixa renda e as comunidades em que vivem. As periferias do Brasil são as regiões mais vulneráveis nessa pandemia, onde os moradores vêm vivendo em situação de risco e fácil contaminação, sem as condições essenciais para cumprir as recomendações de higiene.
Até agora, o distrito com maior número de mortes por Covid-19 ou por suspeita da doença na capital paulista é a Brasilândia. A região teve um total de 156 mortes contabilizadas pela prefeitura até o dia 16 de abril. No início do mês, eram 103 óbitos, mas nos últimos 15 dias houve um aumento de 53% no número. Uma média de 53,5 mortes por cada 100 mil habitantes. Apesar disso, pouco se ouve de medidas de assistência que possam ser realmente efetivas para a população das favelas.
Moradores apontam o não cumprimento das medidas de prevenção e isolamento como um fator para o agravamento da situação. Os famosos bailes de rua continuam sendo realizados, atraindo muitos jovens que, em outros momentos, também se reúnem com os amigos. Existem comércios não essenciais funcionando normalmente e uma grande movimentação nas ruas. Outro fator influente é a desinformação. Boatos e fake news se disseminam enquanto informação de qualidade não chega para todos.
Embora haja casos de desrespeito ao isolamento, a maioria das pessoas estão na rua por necessidade. Para muitos, é preciso ir para o corre para sobreviver a essa pandemia. Ninguém pode se dar ao luxo de parar. Se parar, não come, não paga aluguel, não compra remédio e nem vive. Quem anda pelo bairro vê gente como se não houvesse isolamento algum. Os hospitais estão saturados e já atingiram sua capacidade máxima de atendimento. E, com isso, ter acesso à saúde está cada vez mais difícil.
Quando se tem uma casa bem estruturada e acabada, com mais de um cômodo, comida na mesa, brinquedos, aparelhos eletrônicos, uma boa rede de Wi-fi e uma TV com vários canais, cumprir à risca a medida de isolamento não é tão difícil assim. Mas como pedir para várias pessoas dividindo um único cômodo, sem conforto ou distração alguma, sem alimento e elementos básicos de higiene, ficarem em casa? Centenas de jornais estão noticiando o movimento nas favelas. Mas só quem vive na periferia sabe que muitas vezes é na rua que se encontra aquilo que deveria ter em casa.
Enquanto as soluções propostas pelo governo não conversam com a realidade da periferia, várias ONGs vêm fazendo um grande trabalho para dar auxílio a essas comunidades. Na Brasilândia, institutos como o Adê Ferreira e as ONGs Sou da paz e Amigos do Gordão estão realizando ações para evitar que se aumente ainda mais o contágio e ajudar as famílias afetadas pela Covid-19.
“Isolamento social, home office e álcool em gel têm sido importantes para impedir que o vírus se espalhe ainda mais. Mas a dificuldade é bem maior para quem não pode levar o expediente para dentro de casa, quem está sem recursos para compra de kit de higiene pessoal, ou quem precisa dividir um só cômodo com a família inteira”, afirmou Lucas Ferreira da Silva, diretor do Instituto Adê Ferreira.
Em entrevista concedida à Agemt no dia 24 de abril, Silva contou que grande parte da população da Brasilândia ainda estava à espera do auxílio emergencial anunciado pelo governo. Muitos não têm acesso à internet ou enfrentam dificuldades para lidar com ela, o que dificulta o processo, resultando na aglomeração nas portas das unidades da Caixa Econômica na região.
Ao passo que o Covid-19 avança nas periferias, aumentam também as internações e mortes da população negra. Dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde divulgado no dia 18 de abril apontam que 54,8% dos óbitos registrados são de pessoas negras e pardas. É impossível se falar da relação da pandemia com a desigualdade social sem levar em consideração as questões raciais que são um elemento fundamental na pobreza da população.
Em um efeito sistêmico de séculos de discriminação e racismo, as pessoas negras são maioria da população de baixa renda e, consequentemente, as mais afetadas direta e indiretamente pelo vírus. Uma grande parcela não foi liberada de seu emprego ou é trabalhador informal, por isso se expõe para obter o sustento da família. Muitos vivem em condições precárias, com dificuldade no acesso à saúde pública e sem os recursos básicos para se prevenir do vírus.
“Muita gente morrendo, pois os leitos dos hospitais próximos estão cheios. Se fôssemos esperar pelo setor privado ou pelo governo, mais vidas seriam perdidas.Temos que agradecer a iniciativa dos moradores que estão tomando a frente, buscando parcerias para entrega de cestas e materiais de higiene pessoal”, acrescentou Silva.
Diante do descaso do Estado e das circunstâncias em que a população das periferias do Brasil vem vivendo após a chegada do vírus, a pandemia tornou explícita a realidade genocida de um país marcado pela desigualdade de classe e raça. A pandemia, nas comunidades, não é uma luta contra um vírus, mas uma guerra, já perdida, contra uma vulnerabilidade resultante de anos de negligência. Fica claro, mais uma vez, e não para todos, quem pode morrer aqui.