Olhei para o relógio no meu celular, oito e cinquenta e cinco da manhã. Olhei para a porta da Paróquia São Miguel Arcanjo, trancada.
Quase que como me ouvindo, uma fila de mais ou menos vinte pessoas atravessou a Rua Taquari, duas delas empurrando carrinhos de mão de supermercado e entraram pelo portão lateral da Paróquia.
Rapidamente, dois dos rapazes do grupo entraram na Paróquia e voltaram com alguns bancos de madeira. Eles os colocaram em um círculo e uma cadeira também foi deslocada dos escritórios e posta de frente para os bancos. Todos que acabaram de chegar sentam-se e as demais pessoas que estavam dentro da Paróquia juntam-se ao grupo. Na cadeira, senta-se o Padre Júlio Lancelotti, que acabara de chegar com o grupo da rua.
Ele troca sua famosa máscara (rosa com dois enormes filtros), por uma mais leve e olha em volta. Ele vê que há várias pessoas no portão, eu sendo uma delas, olhando curiosas. Ele as convida para entrar, porém diz que nada vai acontecer ali.
Todos os dias, o Padre Júlio Lancellotti, após rezar a sua missa as sete da manhã, se junta a um grupo de voluntários e se desloca pelas ruas da Moóca com os carrinhos de supermercados cheios de doações feitos a Igreja. Eles vão até o Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, uma das comunidades assistenciais do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar) que se encontra apenas 400 metros da Paróquia. E de lá, ele e seu grupo oferecem doações para aqueles aparecem. Até que nove horas em ponto ele retorna para a Paróquia.
Ele vem fazendo isso desde o começo da pandemia, contou uma das voluntárias. Sua voz cheia de orgulho: “Ele é o único que nunca parou. Durante a pandemia inteira, ele vem todo dia!”.
O seu grupo de voluntários é bem diverso. Um dos integrantes deveria ser mais velho que o próprio Padre Júlio, o mais novo devia ter no máximo vinte anos. O conjunto ainda contava com quatro frades que ouviam atentamente as instruções de Lancellotti.
Após a troca de máscara, Padre Júlio explicou para o grupo como os dias que estavam por vir não iriam ser fáceis. Dois abrigos iriam fechar as portas e não iriam conseguir mais abrigar moradores de rua e com isso a quantidade de pessoas nas ruas da cidade deveria aumentar exponencialmente. Ele também apontou que até o dia sete de setembro, os ânimos nas ruas estariam aflorados e que todos deveriam se manter alertas. Alguns voluntários perguntaram o que poderia ser feito e Padre Júlio falou que ele tentaria falar com o prefeito (sobre o número de pessoas na rua) e sugeriu até de marcar uma reunião com ele.
O celular do Padre Júlio tocou e ele levantou e retirou-se, os outros, rapidamente guardaram os bancos e foram fazer suas tarefas. Eu me vi sentada no escritório da Paróquia, ajudando duas das voluntárias a enrolar as meias que eles haviam recebido de uma doação, conversando sobre o dia a dia delas.
Quando o Padre Júlio retornou, eu me apresentei e por um milésimo de segundo o rosto dele que até agora demostrara apenas certeza e convicção, pareceu terrivelmente cansado, eu me lembrei quase que em choque que ele já tem 72 anos.
Era óbvio que eu não iria conseguir minha entrevista pessoal com ele. Tudo que o Padre Júlio fazia, era feito atendendo quatro, talvez cinco pessoas ao mesmo tempo.
Quando eu saí da Paróquia, quase onze e meia da manhã, Padre Júlio estava atrasado para uma consulta médica. Porém, em nenhum momento eu o vi parando para descansar.
Padre Júlio é conhecido nas redes sociais por defender os mais oprimidos da sociedade: a população carcerária, os sem teto, crianças portadoras de HIV, jovens LGBTQIA+ e menores infratores. Sua carreira é extensa e desde cedo era considerado rebelde.
Aos 19 anos, tentou entrar formalmente para a vida religiosa, no Seminário Santo Agostinho, rapidamente foi visto como “muito questionador” e seu superior o chamou em sua sala e disse: “você não serve para a vida religiosa”.
Em 1970, foi trabalhar na Febem como assessor técnico na Unidade de Triagem 6, que abrigava meninas abandonadas. Saiu em 1979 e em 1980, dom Luciano perguntou a ele: “Quando você vai virar padre?”
Foi ordenado padre diocesano aos 35 anos, o que quer dizer que não pertence a nenhuma ordem e reponde diretamente à Arquidiocese. Com apenas quatro anos de estudo em teologia e sem precisar voltar ao seminário, Padre Júlio e outros três colegas foram ordenados por uma exceção feita por dom Luciano Mendes de Almeida.
Seu trabalho já foi reconhecido por diversas pessoas e instituições. Ele já foi o recipiente do Prêmio Franz de Castro Holzwarth em 2000, por seu trabalho contra a violação sistemática dos direitos das crianças e dos adolescentes. Em 2004, ele recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, do Movimento Nacional dos Direitos Humanos. Em 2007, ele recebeu o prêmio dos Direitos Humanos promovido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, por seu enfrentamento à pobreza. Em 2020, Padre Júlio recebeu por voto popular o prêmio Poc Awards na categoria “Influencer do Ano”, promovido pela Gay Blog Br, por se colocar contra a homofobia. Já em 2021, o Padre Júlio foi um dos vencedores do Prêmio Zilda Arns pela Defesa e Promoção do Direitos da Pessoa Idosa, da Câmara dos Deputados.
O padre que observei na Paróquia São Miguel Arcanjo, na Moóca, conhecia todos os seus voluntários pelo nome, parava sua explicação quando alguém chegava e voltava ao início para que todos a entendessem, e mesmo falando para as pessoas que apareciam no portão que “a distribuição de comida daquele dia já havia acontecido”, entrava na Paróquia e entregava comida para aqueles que pediam.
Em uma entrevista ao Povo Online, Padre Júlio disse: “Não sejamos racistas. Não sejamos homofóbicos. Não sejamos transfóbicos. Não sejamos machistas. Sejamos mais humanos. Temos que ter a capacidade de ouvir mais as pessoas e de conviver com as diferenças. Tem gente que usa a Bíblia para condenar o outro. A Bíblia é para salvar o outro. A palavra de Deus nunca é para ferir. A palavra de Deus é para libertar. A palavra de Deus fere quem é soberbo, quem não tem a sensibilidade com os pobres, os fracos e os pequeninos”.