Pela primeira vez, óbitos superam nascimentos no Sudeste

Estatísticas indicam inversão das curvas de natalidade e mortalidade com avanço da pandemia; fenômeno é visto como pontual
por
Gabriel Janeiro
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28/05/2021 - 12h

Do dia 1º a 8 de abril, pela primeira vez na história, o número de mortes foi maior do que o número de nascimentos na região sudeste do Brasil, de acordo com dados preliminares do Portal da Transparência do Registro Civil. O fenômeno deu-se pela associação entre a redução da natalidade e a explosão da taxa de óbitos no auge da pandemia no país.

O portal de Transparência do Registro Civil é o canal oficial da Arpen Brasil (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais), e reúne informações e dados estatísticos com live acesso. Os dados são preliminares, uma vez que os cartórios do país têm o prazo de 10 dias para registrar nascimentos e óbitos, mas desde o ano passado a tendência é de alta de mortes em relação aos nascimentos.

Os números apontam para 13.998 registros de nascimentos contra 15.967 registros de óbitos na primeira semana do mês, totalizando 4.818 mortes a mais do que nascimentos. No mesmo período do ano passado, pouco depois de o vírus instaurar-se em território nacional, foram registrados 37.075 nascimentos a mais do que mortes.

Desde o início da série histórica, este fenômeno nunca havia sido constatado. Nos últimos 120 anos, a população do Brasil só cresceu.

Na virada para o século 20, eram menos de 20 milhões de brasileiros. Nessa época, as políticas populacionais na América Latina eram explícitas ou implicitamente expansionistas e pró-natalistas, ou seja, incentivavam o crescimento demográfico através de um grande número de filhos por casal.  Atualmente, são 212.9 milhões de brasileiros, de acordo com uma projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Mesmo com a redução do número de integrantes por família nas últimas décadas, o país continuou crescendo. Pode-se observar que a taxa de nascimentos começou a cair de forma gradual, ou seja, a diferença entre nascimentos e óbitos passou a ficar cada vez menor.

Isso porque, em 1974, vários países da América Latina se uniram através da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento de Bucareste, criando organismos ocupados com assuntos de população e desenvolvimento.  No final da década de 1970, a nova realidade demográfica da América Latina se traduzia em políticas para redução do alto crescimento populacional ou em políticas de planejamento familiar para atender à demanda de regulação da fecundidade.

Ainda assim, com o número de nascimentos se aproximando cada vez mais do número de óbitos, a previsão do IBGE era que as curvas de mortalidade e natalidade só se encontrassem em 2047, para que então o país entrasse em um quadro de decrescimento populacional. Com a chegada da pandemia, entretanto, a previsão pode ser adiantada em várias décadas. Isso porque, segundo pesquisadores, o encontro das curvas deve extrapolar os limites territoriais do Sudeste, atingindo o país todo ainda neste mês.

De acordo com o doutor em demografia José Eustáquio Diniz Alves, os impactos da pandemia agiram duplamente no aumento de óbitos e na redução da taxa de natalidade no país, com ênfase na região Sudeste. Isso porque, de acordo com o demógrafo, a situação de descontrole do sistema de saúde e da economia provocou um adiamento dos planos de aumentar a família.

"Primeira coisa a se considerar sobre a pandemia é que ela fez crescer violentamente o número de óbitos no Brasil.  Houve uma consideração sobre um suposto baby boom por causa do confinamento, mas isso se provou falso. Pelo contrário, temos um baby bust, ou seja, uma redução da natalidade do Brasil. Isso porque o sistema hospitalar está um colapso e o desemprego cresceu, de modo que está havendo um adiamento das previsões de ter filho.”

Em entrevista realizada com a geógrafa e mestre em Geografia Humana pela USP, Alice de Oliveira, ela afirma que a inversão permanente das taxas de mortalidade e natalidade deve acontecer antes do esperado, apesar de a evolução da pandemia ser imprevisível. Alice ainda disse que as previsões das dinâmicas populacionais ficam comprometidas no Brasil e no mundo.

José Eustáquio, por sua vez, apresenta uma perspectiva mais otimista. De acordo com ele, trata-se de um caso excepcional. “Eu acredito que, se a gente conseguir controlar a pandemia, diminuir o número de mortos, promover uma vacinação em massa, teremos uma recuperação do número de natalidade para o padrão de nossa geração. Entretanto, a partir de 2047, com a segunda metade do século 21, a tendência é as curvas se inverterem e a população brasileira começar a diminuir. Sobre isso, há muito debate na busca por incentivar ou evitar esse fenômeno, mas fato é que a população se comporta de acordo com suas próprias vontades."

Em sua fala, o especialista refere-se ao debate entre natalistas e controlistas. Os primeiros, que sempre predominaram na história brasileira, consideram que a população deve continuar crescendo e que, ao invés de limitá-la, precisamos acelerar o desenvolvimento. Já os controlistas e neomalthusianos consideram que o alto crescimento populacional prejudica o desenvolvimento econômico, dificulta o combate à pobreza e pode provocar impactos nocivos ao meio ambiente. 

Fato é que o nivelamento ou a inversão das curvas marcaria o fim da transição demográfica no Brasil, e, consequentemente, do bônus demográfico.

O bônus demográfico é um momento em que a demografia facilita o crescimento da economia, e ocorre dentro do processo transição demográfica. A transição demográfica é um conceito que descreve a dinâmica do crescimento populacional, decorrente dos avanços da medicina, urbanização, desenvolvimento de novas tecnologias, entre outros fatores.

Seu criador, o demógrafo estadunidense Warren Thompson (1887-1973), observou as mudanças nas taxas de natalidade e de mortalidade experimentadas pelas sociedades industrializadas de seu tempo nos últimos duzentos anos, e as dividiu em quatro fases:

Créditos: Ourworldindata.org Licenciado sob CC-BY-SA por Max Roser
Créditos: Ourworldindata.org. Licenciado sob CC-BY-SA por Max Roser

Fase 1

Fase com elevadas taxas de natalidade compensadas por altas taxas de mortalidade, com baixa expectativa de vida em contraste com um grande número de filhos por casal. Assim, o crescimento vegetativo é equilibrado. Nesta fase, muitas crianças morrem antes de atingir a idade adulta, principalmente por causa de doenças, fome e da falta de saneamento básico. Esta etapa ocorre antes do processo de industrialização/urbanização.

Fase 2

Queda dos índices de mortalidade motivada pela melhoria nas condições sanitárias, a evolução da medicina e a urbanização, aumentando a expectativa de vida. Em contrapartida, inicia-se um processo de explosão demográfica, superpopulação e aumento do desemprego. Hoje em dia, muitos países subdesenvolvidos vivem essa fase.

Fase 3

Ocorre um declínio na taxa de natalidade devido ao acesso aos métodos anticoncepcionais, ao elevado custo de vida nas cidades, e à difusão da ideia de planejamento familiar. O resultado é um crescimento vegetativo reduzido em relação à segunda fase.

Fase 4

As taxas de natalidade e mortalidade se encontram muito baixas. É criada uma estabilização no crescimento vegetativo, tendo por consequência uma taxa de crescimento natural nula ou negativa.

Para uma fase 5?

Enquanto o modelo original de transição demográfica descrito por Warren Thompson apresenta só quatro fases, atualmente se aceita uma quinta fase, onde a mortalidade superará a natalidade, devido ao alto custo de se criar filhos. Assim, famílias optam por ter um número muito reduzido (entre 1 e nenhum) de filhos para manter o padrão de vida.

Esse efeito é muito temido por analistas, e já está acontecendo em países como a Alemanha, Japão e Itália. Com o decréscimo populacional, o número de idosos tende a superar o de jovens, o que pode acarretar problemas econômicos em relação à falta de uma população economicamente ativa sustentando a atividade produtiva e custeando a previdência social.

A pirâmide etária passa por enorme transformação no Brasil. Na maior parte do século passado, ela tinha uma base larga e um topo muito estreito, mas na virada para o século 21 a base se estreitou e houve um alargamento do meio da pirâmide.

Estes dados indicam que o Brasil vive um período de bônus demográfico, com a redução da taxa de fecundidade ocorrendo simultaneamente à diminuição da mortalidade da população. Isso aumenta a proporção de pessoas em idade ativa em relação à população dependente, elevando a arrecadação de recursos pelo Estado e favorecendo o crescimento da economia.

O encorpamento do topo da pirâmide e o fim definitivo do bônus demográfico estavam previstos para ocorrer, principalmente, na segunda metade do atual século. Com o advento da pandemia, entretanto, uma grande incerteza permeia a questão.

Em meio a esse panorama, José Eustáquio Diniz Alves atenta para o desperdício do bônus brasileiro: “A China já tinha mais de um bilhão de habitantes em 1980, em uma situação de pobreza muito maior do que a do Brasil. Na década de 70, existe a busca por acelerar um processo de decaimento da natalidade, que já se observava, pra fazer a economia crescer e gerar empregos para todos, e foi isso que eles fizeram. O resultado foi sensacional, acabou-se com a pobreza absoluta na China e a renda per capta do país já é bem maior que a do Brasil. Avançaram a educação, avançaram a tecnologia, etc. Isso tudo foi aproveitando o bônus demográfico.”

Segundo o demógrafo, todos os países que aproveitaram esse bônus deram um salto. O ponto central, entretanto, é que seu aproveitamento depende de políticas públicas de pleno emprego, de saúde, de educação, entre outras.

“O Brasil está desperdiçando grande parte do bônus. Um país só pode enriquecer e ter alto índice de desenvolvimento humano antes de a população envelhecer. O desenvolvimento tem que dar um salto nesses 50/60 anos de crescimento demográfico.”

Dependendo do tratamento da pandemia, essas cinco ou seis podem se tornar alguns anos. De acordo com a professora de demografia e membro do Centro de Estudos para População e Desenvolvimento de Harvard, Márcia Castro, em entrevista concedida ao site G1, “o impacto do excesso de mortes é nítido, preocupante, e um reflexo da falta coordenada de controle, o que gera uma condição totalmente inédita. Espera-se que seja temporária, mas depende do que será feito para conter essa alta mortalidade sendo observada”.

Para o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, também em entrevista ao G1, as medidas para conter o elevado número de óbitos no país devem passar por uma mudança de comportamento social e de medidas mais rígidas de isolamento, para que o cenário não seja irreversível.

“Por isso que eu e mais boa parte da comunidade cientifica brasileira temos pedido medidas rígidas, lockdown nacional, bloqueio do fluxo de pessoas, vacinação aumentada e uma coordenação nacional da pandemia. Para que a gente evite esses efeitos estruturais que levam o país para uma situação de não retorno. Essa é uma demonstração cabal sobre os efeitos atuais e futuros da pandemia na vida do Brasil”, disse Nicolelis.

Foto de capa: Xavier Donat
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