'Paraíso das roupas', comércio do Brás sofre com a pandemia

Referência nacional, principalmente em vestuário infantojuvenil, bairro paulistano vê fechamento de lojas em meio a queda no movimento
por
Filipe Saochuk
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03/06/2021 - 12h

“O Arnesto nos convidou para um samba, ele mora lá no Brás.” Este é um trecho do icônico samba de Adoniran Barbosa chamado “Samba do Arnesto”, que conta a história de um desencontro entre amigos  no bairro do Brás. Eternizado na voz de Adoniran, o tradicional distrito do centro de São Paulo é um dos principais pontos de comércio da maior cidade da América Latina.

No início do século 20, o Brás se tornou um ponto de referência da comunidade italiana em terras tupiniquins, que deixavam a Europa para buscar uma vida melhor no Brasil através da imigração. O bairro iniciava nesta época o seu processo de industrialização, do qual  seria o carro-chefe da região.

Porém, após a Segunda Grande Guerra, com um aumento da industrialização em São Paulo, a cidade  passa a atrair muita mão de obra das regiões rurais do país. Com isso, as estações de trem do Brás começam a receber muitas famílias nordestinas que decidiram se mudar para o Sudeste, e uma comunidade que tinha predominantemente italianos  se torna também um ponto de referência da cultura do Nordeste, em pleno  centro da cidade de São Paulo.

Com o passar das décadas, o  bairro do Brás se tornou não apenas uma região de muita cultura na capital, mas, principalmente, de muita força econômica. Majoritariamente, a indústria e o comércio de confecções em atacado e varejo são as principais atividades do bairro, sobretudo de roupas infantojuvenis. Em avenidas como Rangel Pestana e Celso Garcia, a comercialização de produtos populares, como na Avenida 25 de Março, é muito comum e atrai centenas de milhares de pessoas que passam pela região todos os dias. Ou melhor, passavam…

Antes do início da pandemia de Covid-19, mais de 400 mil pessoas passavam pelas ruas do Brás diariamente. Ao todo, eram 4 mil lojas fixadas na região e 8 mil boxes, que geram  mais de 600 mil empregos  diretos e indiretos, como informou Juliana Munaro, em matéria publicada em maio de 2020 no portal G1.

Em 2019, a Secretaria Especial de Comunicação da Cidade de São Paulo divulgou que o bairro do Brás lidera a capital paulista em número de microempreendedores, com um total de 8 mil pessoas, ficando à frente de outros importantes bairros para a economia paulista, como a Bela Vista, com 7.404, Pinheiros (6.988), Vila Mariana (5.982) e Americanópolis (4.949).

Ainda sobre os dados divulgados pela Secretaria Especial de Comunicação da Cidade de São Paulo, em 2019 o Brás já tinha mais de dez shoppings em funcionamento. Cada vez mais os comerciantes querem se afastar do trabalho informal e se aproximar do formal, sendo que mais de 42 mil microempreendedores da capital estavam no meio do comércio varejista de roupas, representando 6% do total de São Paulo. Entre 2014 e 2019, 66 mil pessoas iniciaram um empreendimento neste ramo.

Uma boa parte destes trabalhadores que abriram seus negócios estão localizados no Brás, demonstrando toda a importância que o bairro  tem não apenas no setor de produção e comercialização de roupas e acessórios, mas também em toda a economia da cidade.

A lojista Maria Valéria Veríssimo, dona de um comércio de roupas infantojuvenis em Campinas, comentou um pouco de sua experiência com o bairro do Brás e como a região movimentava pessoas e dinheiro antes da pandemia.

“Procurávamos ir para o Brás às segundas-feiras de manhã, para tentar evitar o movimento do bairro, que era muito grande. O comércio do Brás não atende apenas lojistas de São Paulo, costumava ver ônibus com comerciantes de outros estados, como Minas Gerais, Mato Grosso… todos indo atrás de uma boa oferta em variedade e preços, sendo um ‘paraíso das roupas’, não apenas no atacado, mas também no varejo.”

No quesito valores, Maria Valéria conta  quanto costumava investir em novas peças para sua loja, confirmando que o movimento do bairro não se refere apenas a pessoas, mas principalmente a cifras.

“Diversas vezes já fomos ao Brás para renovar nosso estoque, em praticamente todas as mudanças de coleção. A cada ida, eram pelo menos R$ 20 mil em novas roupas, sendo que algumas vezes os gastos chegaram na casa dos R$ 50 mil.  Tratava-se apenas de uma empresa, agora, se pensarmos em todos os clientes e comerciantes que passam e gastam por lá todos os dias, imagine o quanto de dinheiro que o Brás não gera e movimenta? Não à toa é um dos principais pontos de comércio, não apenas de São Paulo, mas do Brasil.”

Porém, ao final do primeiro trimestre de 2020, essa realidade acabou ficando no passado, e o Brás já não era mais o mesmo, nos mais diversos quesitos. Com a pandemia, o movimento, que era tão intenso, foi repentinamente zerado. O dinheiro que o comércio movimentava já não corria mais e tanto aqueles que precisavam vender, quanto os que precisavam comprar, foram diretamente afetados.

“Logo no início da pandemia, fomos impedidos de comprar no Brás. As lojas costumam ser lotadas, e aglomeração é o que não falta. As incertezas sobre a pandemia e o tempo que levaria até que o mercado pudesse operar normalmente fizeram com que as empresas optassem por não investir em novas peças, o que prejudicou e muito não apenas fornecedores do Brás, mas do país como um todo”,  comentou Valéria.

Com o ápice da pandemia, muitas lojas entraram para o mundo do e-commerce e conseguiram, ainda que não da mesma maneira, vender seus produtos. Porém, para muitos comerciantes e estabelecimentos, quando as atividades presenciais começaram a ser retomadas, já era tarde demais.

“Quando iniciou o processo de reabertura do Brás, percebemos um número muito grande não apenas de lojas, mas também de fábricas, que encerraram suas atividades. É realmente muito triste, porque vemos o desemprego aumentar cada vez mais, em um mercado que, antes de tudo isso, crescia muito, estava em verdadeira ascensão. Já os que conseguiram se manter tiveram uma alta nos preços, por conta de uma oferta menor, e uma necessidade de compensar o que foi perdido durante a paralisação. A pandemia só gerou perdas para o ramo, tanto para quem compra, quanto para quem vende”,  completou Maria Valéria Veríssimo.

Mesmo após alguns meses com o comércio funcionando, o bairro  seguiu extremamente afetado. Movimento reduzido, menor variedade, preços elevados… Até que em março deste ano, com o agravamento dos casos de Covid em São Paulo, foi decretado um novo fechamento total dos serviços não essenciais, o que inclui o comércio. Por mais de um mês, as ruas do Brás voltaram a se esvaziar, e, depois de dar um pequeno passo em direção à normalidade, a região voltou a andar para trás.

Em 19 de abril, o primeiro dia após a reabertura do comércio, o tradicional bairro voltou a ter suas ruas preenchidas de ambulantes e clientes, que foram às compras desde a madrugada. A tendência é que, com o tempo, a situação no Brás vá se normalizando, sendo algo longe do imediato.

Os danos causados pela pandemia foram profundos, e o comércio no bairro  continua sendo afetado. Muitas empresas e fábricas faliram, lojistas não conseguiram mais realizar compras para renovar seus estoques, os preços subiram e a oferta de produtos diminuiu. Assim como em outros aspectos da sociedade, o Brás terá que se adaptar a uma nova realidade para poder voltar a ser uma das grandes forças da economia paulista o quanto antes.