ÀS 11H30, SARAVÁ
Enquanto uns enrolavam até o almoço e jogavam conversa fora, outros discutiam sobre o racismo. Mas quem são os outros? A conversa começa na presença. Quem se reuniu no Pátio da Cruz na manhã e noite desta quinta-feira, 16, tinha história para contar na primeira pessoa, sabendo que não seria a última.
As expectativas eram maiores do que o corpo presente. Que fossem cem em vez dos oito que se dispuseram a discutir, dividir, enxergar uns aos outros como iguais, qualquer interação já soma. Se parece pouco, é porque não se compara às salas de aula. “Quantos [pretos] tinham na nossa turma, amigo? Duas, três pessoas?”.
O Coletivo Saravá age nas sombras procurando o sol. A primeira reunião serviu assuntos que a espontaneidade do encontro marcado trouxe à tona, e que os membros sentem na pele: o racismo. É inevitável. Mais do que na sociedade, que é maior do que os portões do campus podem guardar, esse tema estava estampado na razão de cada um estar ali, à sombra da cruz. “Tem professor negro no curso de vocês? Eu nunca vi nenhum”. Lembraram alguns nomes, que não cobrem sequer os dedos da mão.
As oito vozes ali reunidas ressoavam como uma. Queixavam-se do mesmo descaso, dos mesmos olhares, da mesma impotência. Estavam perdidos. Nas últimas semanas, foram procurados por supostas vítimas que buscavam justiça e que só encontraram ouvidos porque “não tem o que fazer”.
E os militantes se sentiram impotentes. Levantaram bandeiras, planos, fúrias, tudo para quê? Nada seria suficiente, e o sabiam. Eram minoria, até mesmo no pátio. Estavam cercados de mesas e corredores ocupados por quem não se interessou em saber o que estava acontecendo nos degraus à beira da cruz. A simbologia do lugar pode ser obra da coincidência, mas foi redentora desta edição do Papo Preto.
À luz do Pai, somos todos iguais. Mas e quanto aos filhos?
ÀS 17H00, ONDE ESTÃO OS BRANCOS?
"Gente, essas outras pessoas. Elas estão…de boas?", indagou Dandara (nome fictício). Os alunos ali em volta - que não eram negros, aliás - agiram com indiferença perante o Papo Preto. Talvez por desconhecerem o Saravá e/ou por simplesmente não se importarem.
É fruto do privilégio da branquitude não apoiar ou procurar medidas educacionais afirmativas ao seu redor, pois essas são refutadas como suas prioridades. “O racismo é uma problemática branca”, como provoca a portuguesa Grada Kilomba. Mas o conformismo dos brancos em relação às pautas antirracistas é ainda naturalizado, o que dificulta uma branquitude crítica - aqueles que condenam o racismo ativamente, abrindo mão de seus privilégios.
Mas onde estão esses puquianos? Bom, os pretinhos da Pontifícia de cada sala, quiçá do curso, são contados nos dedos de uma só mão. Já os alunos brancos são a grande maioria, tanto pelos corredores do prédio velho quanto do novo. Há brancos o suficiente para edificarem a luta antirracista junto com o Saravá - logo, não existe desculpinha. Afinal, não são as vítimas que devem mudar seu comportamento, mas os réus.
Nesse âmbito, não cabe o receio com o "lugar de fala”, ainda que, obviamente, nunca compartilharão das vivências de um negro. Portanto, um dos seus papéis é reconhecer as vantagens provenientes da (ausência de) opressão. Como defende a ex-professora da PUC Djamila Ribeiro: "Uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que acompanham a sua cor".
ÀS 18H00, UM PRETO SALVA OS OUTROS
"Eu tava faltando muito. Entrei no surto do curso e faltei. Quando chegou a segunda semana do último semestre, voltei para frequentar a faculdade”, desabafou Anielle (nome fictício), uma futura diplomata, sobre a ausência de diversidade no curso de Relações Internacionais, até que ela encontrou uma igual. “Nos conhecemos e viramos amigas porque olhamos: uma preta, outra preta". Com uma mistura de alívio e salvação, encontrar mais pretos em uma faculdade privada com a maioria branca é um colírio para os olhos.
É perceptível nesses vinte anos de exercício das cotas raciais que as faculdades escureceram. Aliás, o black power reinou nas instituições públicas. Contudo, os bolsistas pretos nas particulares lidam com as dificuldades econômicas e raciais. Segundo um formulário respondido pelos integrantes do coletivo no final de 2022, mais da metade dos pretos bolsistas não se sentem representados de jeito nenhum. Chica (nome fictício), aluna pelo programa filantrópico da Fundação São Paulo (FUNDASP), apontou que o bandejão, que estava fechado no começo do ano passado, é uma das únicas iniciativas em prol dos bolsistas. Já Viola (nome fictício), ingressante pelo Programa Universidade Para Todos (Prouni), relembrou benefícios que hoje não passam de uma memória veterana. “Não tenho o que reclamar, a comida é ótima”, comenta. “Porém, antes davam apoio com xerox, agora não”.
Através da pesquisa, estima-se que as pretas puquianas que sentem, com certeza, a solidão da mulher negra somam mais de 70%. Esse sentimento é derivado das situações que as colocaram em segundo plano. Chica enfatiza como o tratamento dos garotos com ela é diferente em comparação às meninas brancas: “Não me chamam para encontro, cinema ou até pra ir na casa deles. Normalmente, ficam comigo nas festas, sem compromisso”. Viola, por sua vez, abordou as impressões de ser uma mulher gorda e preta: “Não me sinto bonita o suficiente. Para mim, ir em festas da PUC, só se for para beber. Se for para conhecer pessoas, no quesito sentimental, nem rola”.
[Confira a pesquisa na íntegra sobre o cenário da comunidade negra na PUC-SP]
ÀS 19H00, VAI PELA SOMBRA
Não grita. Não corre. Não abre os braços. Não mexe muito nos bolsos. Carrega sempre a identidade, a carteira de trabalho. Não dá motivo para eles. Não reclama, não responde, não reage. Na dúvida, não faça. É perigoso ter coragem quando o medo deles comanda as grades. Você não quer ver a mãe chorando na televisão.
Escuta, engole em seco, segue a vida. Agradece, para garantir. Eles guardam com facilidade o teu rosto - qualquer dúvida morre na cor. Escolha com cuidado as palavras. As pessoas aqui são poderosas. Quem é minoria não pode se dar o luxo de esperar a boa vontade da maioria, e o contrário é irrelevante. Enquanto só os poucos se incomodam, a indiferença dos muitos já os configura cúmplices.
Diante de tudo isso, é preciso aquilombar. Buscar os seus, que nunca mais serão deles. Encontrar na luta e na dor do outro a razão para continuar firme onde está. Na soma, encontra-se o sustento de uma reivindicação que vai além da Consciência Negra, que busca no coletivo o que o indivíduo não conquista sozinho.
Enquanto ecoarem os açoites do chicote colonial, que sejam mais altas as vozes da indignação e da reparação. Enquanto existir PUC-SP, que resistam e existam os pretos de sua história. Que gritem, sem medo, aos quatro cantos: Saravá!