“Fogo nos racistas” frase da música “Olho de tigre” do rapper mineiro Djonga, é uma das mais marcantes passagens na luta contra o racismo. A expressão foi motivo de falatório nas redes em abril deste ano, quando uma enfermeira preta, utilizou seu Facebook para denunciar uma agressão sofrida pela irmã, postando a frase com revolta. Um juiz do tribunal de justiça de São Paulo, determinou que a enfermeira excluísse a postagem, alegando apologia à violência, o que levou a protestos de militantes e artistas da área.
No dia 18 de junho, no festival CENA, o bordão, mais do que cantado, foi vivido nos palcos. O rapper contou com um dublê que foi incendiado durante o show, uma forma de referenciar o icônico trecho. Mais uma vez, a opinião do público se dividiu nas redes.
Este episódio retrata a forma como o rap/trap são utilizados como instrumentos de resistência e representatividade para a comunidade preta e periférica, viabilizando lutas e cedendo espaço para denunciar realidades.
“O rap foi feito e é para as pessoas negras, nele é englobado vários temas sociais. Com um evento como o cena a maioria dos artistas são negros e a maioria dos ouvintes também, dando visibilidade para a comunidade” Evidencia Ana Vitória Santiago, de 19 anos, integrante da plateia do festival. Ela ainda reforça o importante papel dos artistas para conscientização social: "a música é um grande meio de comunicação sendo assim também tem a obrigação de conscientizar o seu público."
“Cada composição que escrevo tenho uma mensagem para alguém que passou pela mesma coisa que eu, todas as músicas que escrevo são vivenciadas por mim, não consigo fazer algo que seria um mito em minhas composições, tentando passar uma mensagem de máximo conforto, foco, perseverança e o mais importante a verdade.’’ Thais Aparecida,25, mais conhecida como “Emici Thay” trás a ideia da responsabilidade de um artista do gênero, expõe as principais mensagens que busca com seus sons. Não somente a questão da representatividade é colocada em questão, a autoestima, a exaltação da beleza da comunidade são pontos tocados nas composições. A temática da ostentação com a ambição de tomar posições de poder são também temas centrais das letras das canções.
“Pra nóis que somos pretas os clichês são outros” “Sendo forjado porque a ameaça de vida pra eles é um preto”. Trechos de “Freestyle 2022” música que conta com a colaboração de mais de 8 artistas, aborda as dificuldades de vida enfrentada antes e durante a fama. Dentre eles, Tasha e Tracie e Kyan, grandes nomes do rap na atualidade, juntos, somam mais de dois milhões do ouvintes mensais no Spotify. Os rappers ouviram seus nomes serem entonados no palco principal do evento.
As grandes produções musicais atuais têm sempre uma inspiração na velha guarda, que luta pela visibilidade das periferias a muito tempo. “O show do racionais quando os outros artistas já tinham se apresentado, pararam pra assistir o show, tipo, como se fosse uma aula” Ana Vitória cita um dos momentos do evento que a deixou mais emocionada. Racionais MCs, um dos grandes nomes do rap nacional, foram um dos nomes mais aguardados pelo público, mesmo com um atraso de 1h, os artistas foram recebidos com admiração e a certeza de uma plateia que sabia suas músicas de cor. “Sobrevivendo ao inferno” disco lançado em 1997 conta com mais de um milhão e meio de cópias vendidas, passa a mensagem de uma juventude negra em meio a pobreza, crime e violência. O disco que virou livro, em 2018 tornou-se leitura obrigatória para vestibular da universidade de campinas.
Segundo a organização do evento, mais de 100 mil pessoas circularam no sambódromo do Anhembi nos três dias de festival. A estrutura contou com três palcos: Mundo Cena, TrapHits e palco cena, O palco principal “Mundo cena” contou com a parceria do Spotify. Nomes nacionais e internacionais foram vistos pelo público, como: Playboi Carti, Lucas Carlos, Borges, Ebony, Slipmami, entre outros, a estimativa foi de 70 artistas apresentados.
A estrutura do evento contou com praça de alimentação, área de basquete e um shopping de souvenirs. A grande quantidade de filas e densidade de pessoas foi um ponto negativo citado entre o publico. A falta de alguns artistas do line up (Mc Caverinha, KayBlack) também demandou certo jogo de cintura por parte da organização para adaptar e comunicar os novos horários.
A primeira edição do festival foi em 2019, com a proposta de expandir o gênero musical pelo país e dar visibilidade a artistas em ascensão. Em 2022, mesmo sendo adiado (originalmente seria em abril, tendo duração de dois dias) o festival continuou com sua proposta inicial.
“Temos diversos talentos na área, mas de 1 em um milhão 10 estão se destacando. Não desmereço a correria de nenhum artista, mas percebemos que nessa cena musical muitos que não mereciam, tanto por disciplina quanto humildade e qualidade de composição, se destacam e passam a frente de muitos que fariam a diferença e tem a real qualidade. Isso tudo por falta de OPORTUNIDADE.” Emici Thay desabafa sobre a perspectiva de crescimento dentro da indústria musical do gênero.
Após o evento, Instagram, Twitter e Tiktok explodiram com conteúdos. Somente o Tiktok somou mais de 128 milhões de visualizações na hashtag #cena2k22. Alguns dos conteúdos, citam que “O público-alvo não teve condições de ir” ao alegar que viu-se muitas pessoas ao qual as musicas não eram direcionas.
A representatividade sempre vai ser um assunto a ser pautado, seja na música, no cinema, na televisão. O rap, é um dos principais vetores de mensagem de conscientização, pois, a música além de ser cantada, é vivida por grande parte dos compositores. “Eu me vejo nas canções do racionais" cita Eduardo de Souza, de 55 anos, morador da Zona sul de São Paulo, porteiro e fã dos mc´s. Ele assistiu a ascensão do grupo e vê hoje, o impacto dos versos na geração de seus filhos.
O sentimento de reconhecimento e pertencimento é algo essencial para uma população cuja cultura foi e ainda é vista como inferior. como escrito por racionais mc´s e citado por seu Eduardo: "Eu não li, eu não assisti, eu vivo o nego drama, eu sou o nego drama."