Os olhares despercebidos

A falta de punição e de responsabilidade por violações dos Direitos Humanos no país durante o regime militar por parte de empresas, permanece na carência
por
Beatriz Alencar Gregório
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26/09/2023 - 12h

A ditadura é uma realidade para muitos, mas um denominado ‘exagero’ para outros. Porém, o que é um fato universal é a existência dos Direitos Humanos. Contudo, só após o fim do período ditatorial no país (1985), em 1988, é que tais concessões ganharam força dentro da nossa Constituição, apesar dos declarados como fundamentais já estarem consignados desde 1946. Com isso, está liberado apartar toda a violação cometida, em suma pelo estado, mas também em massa pelas grandes empresas, contra a classe popular e os habitantes de determinadas regiões do país, com a justificativa de que tais direitos ainda não eram assegurados?

O que é importante ter em mente, é que esse controle que perdurou pouco mais de duas décadas no país, não se sustentaria sem a inclinação de uma classe importante da sociedade brasileira. Ou seja, com civis ocupando espaços administrativos em empresas (estatais ou não), benefícios tanto financeiros quanto autoritários, serviram como um “rejunte” fundamental para firmar o feito militar.

A fim de dissecar a repressão política e humana das empresas que fizeram parte desse organismo opressor, o Ministério Público Federal (MPF) abriu investigação contra 12 empresas brasileiras que mantinham ações criminais ativas durante a ditadura, que envolvem desde mortes à remoção forçada de indivíduos de suas casas sem sequer garantia de restituição. Empresas como a Itaipu, Folha de S. Paulo e Volkswagen, foram algumas das que compuseram a investigação.

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Canteiro de Obras da Itaipu em 1977 – Foto: Paulo Moreira/Agência O Globo

 

A usina hidrelétrica de Itaipu foi um projeto desenvolvimentista da ditadura que fez parte dos quatro grandes empreendimentos brasileiros e uma das formas de tentar consolidar a visão de que o setor elétrico era uma evolução para a nação; mas isso inevitavelmente se inclinava mais para o quesito de soberania que os militares de fato projetaram, do que para um progresso do país.

Em uma entrevista à plataforma “A Pública”, a usina afirmou que “foi pioneira ao estabelecer, ainda em 1975, os Atos Normativos para a Saúde e Segurança dos Trabalhadores”. Quando questionada se essa denegação de coparticipação e/ou cumplicidade em atos da ditadura poderia também ser uma negação de responsabilidade, a pesquisadora e historiadora Jussaramar da Silva afirma que, de maneira mais simples, “a resposta de Itaipu a tal questionamento do jornalista André Borges não dá conta de explicar o que houve então. Se em 1975 estabeleceram os atos normativos, porque somam 43 mil acidentes de trabalho? A contradição está dada na própria resposta da empresa”.

Essa afirmação é relacionada a dados oficiais disponibilizados pela própria estatal que mostram, dentre outras informações, pontos controversos: a construção dependeu de mais de 100 mil trabalhadores para ser realizada e desses, mais de 43 mil se acidentaram e “somente” 106 desse número de fato faleceram. Também exibem o deslocamento de quase 40 mil pessoas de suas casas para a expansão territorial da usina.

Pelas pesquisas de Jussaramar, as mortes em “acidentes” de trabalho e a retirada de moradores de seus lares não eram os únicos meios de ferir os Direitos Humanos dentro da Itaipu. “As condições de vida dos trabalhadores era um dos quesitos do contrato de trabalho, pelo que pudemos apurar, e as denúncias versam sobre o fato de as garantias de alimentação, moradia, saneamento básico estarem sendo sistematicamente descumpridas”.

Para José Arbex Júnior, graduado em Jornalismo e com doutorado em História Social, “as grandes empresas, que representam o capital, venham a falar sobre algumas coisas somente se isso for ajudar a promover algum produto ou melhorar a imagem. Mas não por um sentimento moral ou de civilidade que obrigue essas empresas a assumirem suas responsabilidades”, indo de acordo com as controvérsias documentadas pela empresa.

“A Ditadura foi muito eficiente em corroer a memória social e apagar os rastros de seus crimes e violências”, na fala de Jussaramar, que conta que em uma de suas pesquisas, o que mais notou “durante entrevistas realizadas em Foz do Iguaçu, é uma grande dificuldade de conseguirmos depoimentos. Em alguns casos, o medo foi um relato. Em outros, a falta de conhecimento. Mas essa estrutura militarizada, que não sabemos ao certo se ainda existe ou não, ainda que com outro nome, parece ser um dos motivos da não busca por justiça e reparação”.

Para o professor doutor em história Luiz Antonio Dias, “parte das violências contra presos e perseguidos políticos não eram divulgadas, por conta da censura e, mesmo, por uma opção dos próprios veículos de comunicação. Não podemos nos esquecer que grande parte dos meios de comunicação apoiaram o golpe de 1964 e o regime ditatorial”. E com a Folha de SP não foi diferente.

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Octavio Frias de Oliveira (dir.) e Carlos Caldeira acompanhado pelos dois filhos, 1965 – Foto: arquivo pessoal da Folha

 

Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, na época donos da Folha, sempre negaram ter dado apoio, material ou não, à repressão. Sabendo que haveria uma possível crise com a chegada do regime, demonstrou seu apoio à ditadura dos generais. Mas, após a queda, tentou se firmar pela militância pela ditadura do mercado. O que não deu tão certo. O jornal teve seu envolvimento em corroboração e/ou em conivência com atos ditatoriais. E isso se comprovou mais ainda em documentos e testemunhos obtidos pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Tais documentações explicitam que, mais do que disseminar os “benefícios” e “conquistas” que a ditadura traria, a Folha de SP disponibilizou carros utilizados como pontos de encontro para planejamento ou diretas ações repressivas.

Antigamente, para a entrega das edições diárias dos jornais, eram utilizados os chamados “carros de distribuição”. Ter diversos veículos das editoras em circulação por longas distâncias, não era algo estranho no cotidiano da época. Desse modo, as operações com automóveis da Folha passavam despercebidas entre os cidadãos, dado ao disfarce que esses carros cediam.

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A Associação Libertadora Nacional (ALN) foi diretamente atingida por várias dessas ações planejadas. A fim de alcançar uma “libertação nacional” sob a ditadura, o movimento não era bem-visto dentro do meio militar. A principal forma de resistência dessa associação ao regime era a armada. Para ter acesso a tal recurso, um dos meios para era roubando armas de policiais à paisana. Em um cenário parecido com esse, na data de 23 de setembro de 1971, sem notarem a importância de um carro de distribuição da Folha estacionado perto do verdadeiro alvo (camburão), militantes da ALN tentaram conquistar a posse das armas. Antes que conseguissem, soldados saíram do veículo de entrega do jornal e atiraram em sua direção. Três deles foram atingidos, dos quais, mais tarde, tiveram seus nomes colocados na lista oficial de desaparecidos políticos.

Um deles, Antônio Sérgio de Mattos, foi retificado na requisição do seu laudo de morte do IML como “Desconhecido - terrorista”. A ANL, como forma de protesto às repressões com o uso de carros da Folha, ateou fogo em três veículos do jornal e denunciaram, através de um periódico da organização, a participação da Folha de SP nas operações do CODI (Centro de Operações de Defesa Interna). Em resposta, a publicação de um editorial com direito a primeira página com o título de “Banditismo”, onde o próprio Octavio Frias declarava que, no país, pairava “um governo sério, responsável e com indiscutível apoio popular”.

A Comissão Nacional da Verdade foi fundamental para muitos processos vinculados a falta de asseguramento dos direitos humanos na época da ditadura. E dado a isso, em 2015, a cumplicidade da Volkswagen foi inicialmente investigada pelo MPF.

Uma das ações militares, como tentativa de desarticular as “revoluções comunistas” contra o regime foi a criação da OBAN: Operação Bandeirante. De acordo com textos armazenados no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea no Brasil), a fundação foi celebrada e financiada por diversas empresas, inclusive, a Volkswagen. 

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Linha de montagem de veículos na rua do Manifesto, no Ipiranga; na foto uma Kombi Pick-up, que levou tempo para ser fabricada no Brasil, só em 1967

 

Além do capital, a montadora francesa também disponibilizava ou doava carros da empresa, para operações como encaminhamento de “suspeitos” para “interrogatórios” que, em sua maioria, não tinham retorno. Somado a isso, a empresa ainda denunciava seus próprios funcionários, o que gerava um ciclo de atos que iam desde a troca de informações até o acobertamento de prisões ilegais, reforçando um controle ideológico dos trabalhadores.

No relatório divulgado pelo Ministério Público Federal, com corroboração do Ministério Público de São Paulo e do Ministério Público do Trabalho sobre os crimes da Volkswagen na ditadura, “Direitos Humanos, Empresas E Justiça De Transição: O Papel Da Volkswagen Do Brasil Na Repressão Política Durante A Ditadura Militar” [link], uma das conclusões que essa ata demonstrou foi de que “a colaboração da empresa com a VW não foi eventual ou fruto de pressões insuportáveis. Ao contrário, está claro que a Volkswagen estabeleceu por disposição própria uma intensa relação de contribuição com os órgãos da repressão política, muito além dos limites da fábrica. A empresa demonstrou vontade de participar do sistema repressivo, sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura” (pg. 34).

O controle ideológico não pairava somente na Volkswagen. “O documento produzido pelo Conselho de Segurança Nacional informava, inclusive, quais trabalhadores teriam uma ficha padrão nas empresas ou mesmo em Itaipu, (...) eram os denominados “Pedidos de Busca”, que objetivavam as AESI’s (Assessorias Especiais de Segurança e Informações da Itaipu) criarem listas de demitidos por antecedentes político-ideológico ou criminais”, de acordo com Jussaramar.

Ao ser indagado se a reparação por meios monetários é o suficiente para ser considerado algo digno para as famílias e para a memória dos oprimidos da época repressiva do país, Luiz Antonio afirma que “as violações de DH são consideradas imprescritíveis, no entanto, no caso brasileiro, a Lei da Anistia promulgada em 1979, permitiu que torturadores e assassinos do regime ficassem impunes. Ainda hoje, esse tema é alvo de debates e controvérsias, pois muitas vítimas e familiares das vítimas buscam justiça e reparação”. Ainda acrescenta que na “constituição de 1988 já previa a reparação para as vítimas da Ditadura Civil-Militar, direcionando-a àqueles que sofreram os atos de violência, não aos responsáveis por cometê-los”.

Mas a falta de conhecimento por parte das vítimas da busca pelos seus direitos supera o medo na procura de alguma justiça. Para Jussaramar, isso ocorre porque “se construiu uma história e uma memória por décadas no Brasil que as vítimas foram os presos, mortos e desaparecidos. Claro que eles são vítimas também (...), mas o que está começando a ser trazido à tona é que esse empresariado, que colaborou e se beneficiou da ditadura conseguiu subsumir do debate, por décadas, que eles tiveram relação direta com todo o processo ditatorial, inclusive cerceando ou bloqueando o debate público”.

Sobre essa falta de reconhecimento de responsabilidade por parte das empresas, Arbex afirmou que “a maneira como a elite brasileira sempre se comportou e a forma como ela sempre conseguiu reprimir as manifestações populares e se perpetuar no poder, não os coloca em posição de acharem que tem obrigação alguma com a sociedade”. E isso tudo seria “resultado do processo de construção do Brasil”, dado que “o Estado brasileiro foi construído contra a nação brasileira. Pois de um lado, você tinha a população majoritariamente composta por negros, indígenas, etc., e do outro lado um Estado predominantemente controlado pelas elites, e isso nunca foi desafiado”.

A Lei de Reparação para os Mortos e Desaparecidos auxilia as vítimas e seus familiares a, nas palavras de Luiz, procurarem o “reconhecimento das violações de direitos humanos ocorridas durante a Ditadura e na busca por reparação”. Porém, um dos pontos que circundam essa questão, é a demora do que temos conceituado como justiça.

Informações publicadas pelo governo através do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, alegam que “o caminho para buscar reparação aos trabalhadores e outros afetados será na esfera cível, pois, no Brasil, a lei impede que empresas sejam processadas criminalmente, exceto por crimes ambientais e contra a ordem econômica e à economia popular, o que não é o caso de crimes como tortura, morte e remoção forçada de moradores”. A Lei da Anistia, também consta nessa declaração, alegando que o fato dessa lei ser constitucional “impede que ações penais prosperem”.

Para Luiz, “a responsabilização dos sujeitos, ainda que não ocorra uma persecução penal, é importante para prestar contas à sociedade, para mostrar que isso não foi, e não é, normal. Não é possível aceitar a exaltação de torturadores nas tribunas, nas redes sociais, no Congresso. As vítimas, bem como seus familiares, nesse sentido continuam sendo agredidas”. Sendo assim, “sem um acerto de contas com o passado, sem uma justiça de reparação, ao menos historicamente, sem a condenação da apologia à ditadura e aos torturadores, não avançaremos no processo de superação do trauma”. Trauma esse que é um fato essencial para o atual distanciamento na conquista de justiça das vítimas que, nas palavras de Jussaramar, “essa estrutura militarizada” faz com que os trabalhadores tenham “sempre medo de iniciar ações contra empregadores”.

É importante ter compreensão de que houve “contribuição dos diversos atores sociais na construção de uma narrativa de esquecimento e conciliação como o único caminho para a transição democrática” como alega Luiz. E o que todos esses casos e rastros têm em comum, para Arbex, “é a negação dos Direitos Humanos ao povo”, dado que o passado ainda se enraíza hoje.

Ao ser questionada se esse profundo descompasso com as medidas da justiça de transição e dos pressupostos de um Estado de Direito indica o baixo grau de democratização que atingimos mais de 30 anos após o fim da Ditadura no país, Jussaramar respondeu que “sim! Um dos problemas centrais foi a criação de uma memória no Brasil de que o país teve poucas vítimas da Ditadura. Não são lembradas as vítimas no campo; nas periferias, sejam vítimas de esquadrões da morte ou de atuações truculentas das polícias; vítimas quilombolas; vítimas nas florestas; vítimas de remoções (Itaipu nos mostra claramente o problema também das remoções)”. E ainda acrescenta que “são muitas vítimas da Ditadura que sequer sabem que foram vitimados”, isso porque “o fato de termos tido uma transição negociada e não ter havido possiblidade de um debate amplo, que só agora ampliamos para discutir a participação empresarial, é que podemos ter como perspectiva a organização de uma justiça de transição. E é importante que ela seja pautada a partir do olhar e da fala das vítimas. Não é possível realizar negociações alijando os principais envolvidos e interessados. A Justiça de Transição só será completa com essas milhares de pessoas que precisam puderem falar”.

Para o filósofo Walter Benjamin, a história que sabemos e conhecemos seria fonte da “escrita dos vencedores”. Na narrativa ditatorial, esse papel seria daqueles que foram ignorados, os “invisíveis”. Relembrar as explorações das feridas deixadas pelo regime militar no país é olhar, necessariamente, para essa mesma história, com os olhos dos oprimidos.

 

Esta reportagem foi produzida como atividade extensionista do curso de Jornalismo da PUC-SP.