Quando alguém se inscreve para usar um serviço online ou cria uma conta em um aplicativo, costuma se deparar com um conjunto de regras e acordos chamados de "Termos e Condições". Basicamente, é um documento que contém diversas regras, diretrizes, regulamentos e cláusulas legais para o uso dos serviços e produtos de qualquer empresa pertencente ao mundo digital; é um contrato que define a relação do prestador de serviço com o seu usuário. Para a companhia em questão, esses termos são nada mais nada menos que uma proteção jurídica.
Antes de poder começar a usar o serviço, o usuário é solicitado a concordar com esses termos. No entanto, eles costumam ser longos e escritos em linguagem legal complexa, o que pode tornar o seu entendimento mais trabalhoso. Essa maneira de apresentação (com diversas páginas, repletos de jargões jurídicos e com letras pequenas) faz com que a grande maioria dos consumidores negligenciem o conteúdo escrito e apenas cliquem em “Aceitar”.
Com o desenvolvimento e popularização da Inteligência Artificial, isso tende a se tornar um problema maior. Com tecnologias mais avançadas, as empresas agora possuem diversas maneiras a mais de fazer uso de dados, informações e até mesmo a imagem (no caso das redes sociais) coletados de um usuário.
Em função disso, é necessário criar uma cultura de atenção cada vez maior aos T&C antes de aceitar qualquer imposição. Como a rotina de ‘aceitar sem ler’ já é extremamente habitual na internet, a divulgação da legislação a respeito do assunto já pode ser muito útil.
Em entrevista à AGEMT, a advogada Cláudia Lourenço Tabano, formada em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e que atua na área civil, afirmou: “Existem quatro limites bem claros em relação aos Termos e Condições de uma empresa, e podemos tratá-los separadamente para analisar as possibilidades de inserção da IA dentro de cada um”.
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Proteção de dados e Privacidade
O primeiro limite crítico dos T&C está relacionado à proteção de dados e privacidade. À medida que a coleta de dados se torna mais intrusiva na era digital, as empresas devem estabelecer cláusulas que explicitem como os dados dos consumidores serão utilizados, armazenados e compartilhados. Um exemplo que retrata bem, levando ao extremo esse problema da falta de privacidade, aparece no primeiro episódio da sexta temporada de Black Mirror, uma série da Netflix. O nome do episódio é “Joan é Péssima”. Nele, ao aceitar os termos e condições de um serviço de streaming, uma mulher passa a ter sua vida ‘reprisada’ em uma série. A reprodução vai até os últimos detalhes, e traz consequências pesadas para a vida da mulher, como demissão e fim do relacionamento.
“Se fosse na vida real, a possibilidade do processo existiria, porque a lei da proteção de dados e privacidade é rígida em relação a isso”, completa Cláudia: “Esse episódio é um modelo dos perigos da IA nesse sentido. Se uma série mostrando a vida da pessoa já gerou todo esse alvoroço, imaginem as novas tecnologias que conseguem até mesmo recriar pessoas em diferentes contextos”.
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Transparência e Acessibilidade
Um dos principais limites dos T&C de uma empresa é a necessidade de transparência e acessibilidade. As empresas têm o dever de apresentar seus termos de maneira clara e compreensível para os consumidores. Muitas vezes, as cláusulas complexas e a linguagem jurídica podem criar barreiras à compreensão, tornando difícil para os consumidores entenderem seus direitos e obrigações. Portanto, os T&C devem ser redigidos de forma clara e acessível, garantindo que os consumidores possam tomar decisões informadas.
A respeito desse assunto, Cláudia lamenta: “A Inteligência Artificial teria muito a ajudar nesse ponto. Se os grandes proprietários quisessem facilitar o acesso e a interpretação universal dos seus T&Cs, as novas IAs poderiam ser úteis no sentido de dinamizar os textos e aproximar o consumidor do que ele precisa saber ao concordar com o produto. No entanto, o que se enxerga no momento são tentativas inescrupulosas de utilizar esse tipo de tecnologia para conseguir ainda mais dados dos usuários, sempre fazendo uso de artifícios nebulosos para tal”.
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Cláusulas Abusivas
Cláusulas abusivas são outro limite crítico que deve ser observado nas T&C das empresas. Essas cláusulas são frequentemente usadas para desequilibrar a relação entre a empresa e o consumidor, restringindo direitos legais ou impondo obrigações excessivas. Governos e órgãos reguladores têm a responsabilidade de identificar e proibir cláusulas abusivas, a fim de garantir a justiça nas relações comerciais.
Na opinião de Cláudia, a Inteligência Artificial vai contra a motivação das principais tecnologias nesse sentido: “A grande função de uma inovação é garantir uma realidade mais justa, acessível e moderna para todos. Com esse maquinário de IA concentrado nas mãos dos mais ricos e elitizados, essa ferramenta pode ser usada para garantir relações mais desiguais ainda entre empresas bilionárias e consumidores, que muitas vezes não tem outras alternativas senão aceitar imposições”.
Esses são os principais limites que buscam de alguma forma regular o poder que as empresas têm sobre os consumidores através dos T&C. Cláudia encerra: “Claro que vemos no dia-a-dia diversos métodos que os chefes desse ramo usam para burlar essas regras e tentar maximizar suas vantagens. A Inteligência Artificial, apesar do nome, só existe quando há alguém por trás gerando seus interesses através dela. É claro que é importante que haja campanhas de conscientização a respeito dos T&C, mas é complicado exigir isso agora, em um mundo tão acostumado a só ‘concordar sem ler’ e tomado de assalto por essas novas tecnologias. Portanto, a curto prazo, o fundamental é se manter sempre atento ao que surge no mundo, além de sempre se colocar em jogo. A pergunta que deve ser feita é: ‘Como essa nova ferramenta pode me atingir? Como eu posso evitar que as consequências ruins disso cheguem até mim?’. O resultado disso já vai ser uma análise mais cuidadosa em relação a tudo que uma pessoa assina na vida”.