Os limites dos termos e condições de uso da IA

O simples ato de “assinar sem ler” ao navegar pela internet pode ter consequências mais graves do que se imagina
por
Felipe Abel Horowicz Pjevac
Pedro Paes Barreto Monteiro
|
05/09/2023 - 12h

Quando alguém se inscreve para usar um serviço online ou cria uma conta em um aplicativo, costuma se deparar com um conjunto de regras e acordos chamados de "Termos e Condições". Basicamente, é um documento que contém diversas regras, diretrizes, regulamentos e cláusulas legais para o uso dos serviços e produtos de qualquer empresa pertencente ao mundo digital; é um contrato que define a relação do prestador de serviço com o seu usuário. Para a companhia em questão, esses termos são nada mais nada menos que uma proteção jurídica.

Antes de poder começar a usar o serviço, o usuário é solicitado a concordar com esses termos. No entanto, eles costumam ser longos e escritos em linguagem legal complexa, o que pode tornar o seu entendimento mais trabalhoso. Essa maneira de apresentação (com diversas páginas, repletos de jargões jurídicos e com letras pequenas) faz com que a grande maioria dos consumidores negligenciem o conteúdo escrito e apenas cliquem em “Aceitar”.

Com o desenvolvimento e popularização da Inteligência Artificial, isso tende a se tornar um problema maior. Com tecnologias mais avançadas, as empresas agora possuem diversas maneiras a mais de fazer uso de dados, informações e até mesmo a imagem (no caso das redes sociais) coletados de um usuário.

Em função disso, é necessário criar uma cultura de atenção cada vez maior aos T&C antes de aceitar qualquer imposição. Como a rotina de ‘aceitar sem ler’ já é extremamente habitual na internet, a divulgação da legislação a respeito do assunto já pode ser muito útil.

Em entrevista à AGEMT, a advogada Cláudia Lourenço Tabano, formada em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e que atua na área civil, afirmou: “Existem quatro limites bem claros em relação aos Termos e Condições de uma empresa, e podemos tratá-los separadamente para analisar as possibilidades de inserção da IA dentro de cada um”.

  1. Proteção de dados e Privacidade

O primeiro limite crítico dos T&C está relacionado à proteção de dados e privacidade. À medida que a coleta de dados se torna mais intrusiva na era digital, as empresas devem estabelecer cláusulas que explicitem como os dados dos consumidores serão utilizados, armazenados e compartilhados. Um exemplo que retrata bem, levando ao extremo esse problema da falta de privacidade, aparece no primeiro episódio da sexta temporada de Black Mirror, uma série da Netflix. O nome do episódio é “Joan é Péssima”. Nele, ao aceitar os termos e condições de um serviço de streaming, uma mulher passa a ter sua vida ‘reprisada’ em uma série. A reprodução vai até os últimos detalhes, e traz consequências pesadas para a vida da mulher, como demissão e fim do relacionamento.

“Se fosse na vida real, a possibilidade do processo existiria, porque a lei da proteção de dados e privacidade é rígida em relação a isso”, completa Cláudia: “Esse episódio é um modelo dos perigos da IA nesse sentido. Se uma série mostrando a vida da pessoa já gerou todo esse alvoroço, imaginem as novas tecnologias que conseguem até mesmo recriar pessoas em diferentes contextos”.

  1. Transparência e Acessibilidade

Um dos principais limites dos T&C de uma empresa é a necessidade de transparência e acessibilidade. As empresas têm o dever de apresentar seus termos de maneira clara e compreensível para os consumidores. Muitas vezes, as cláusulas complexas e a linguagem jurídica podem criar barreiras à compreensão, tornando difícil para os consumidores entenderem seus direitos e obrigações. Portanto, os T&C devem ser redigidos de forma clara e acessível, garantindo que os consumidores possam tomar decisões informadas.

A respeito desse assunto, Cláudia lamenta: “A Inteligência Artificial teria muito a ajudar nesse ponto. Se os grandes proprietários quisessem facilitar o acesso e a interpretação universal dos seus T&Cs, as novas IAs poderiam ser úteis no sentido de dinamizar os textos e aproximar o consumidor do que ele precisa saber ao concordar com o produto. No entanto, o que se enxerga no momento são tentativas inescrupulosas de utilizar esse tipo de tecnologia para conseguir ainda mais dados dos usuários, sempre fazendo uso de artifícios nebulosos para tal”.

  1. Cláusulas Abusivas

Cláusulas abusivas são outro limite crítico que deve ser observado nas T&C das empresas. Essas cláusulas são frequentemente usadas para desequilibrar a relação entre a empresa e o consumidor, restringindo direitos legais ou impondo obrigações excessivas. Governos e órgãos reguladores têm a responsabilidade de identificar e proibir cláusulas abusivas, a fim de garantir a justiça nas relações comerciais.

Na opinião de Cláudia, a Inteligência Artificial vai contra a motivação das principais tecnologias nesse sentido: “A grande função de uma inovação é garantir uma realidade mais justa, acessível e moderna para todos. Com esse maquinário de IA concentrado nas mãos dos mais ricos e elitizados, essa ferramenta pode ser usada para garantir relações mais desiguais ainda entre empresas bilionárias e consumidores, que muitas vezes não tem outras alternativas senão aceitar imposições”.

Esses são os principais limites que buscam de alguma forma regular o poder que as empresas têm sobre os consumidores através dos T&C. Cláudia encerra: “Claro que vemos no dia-a-dia diversos métodos que os chefes desse ramo usam para burlar essas regras e tentar maximizar suas vantagens. A Inteligência Artificial, apesar do nome, só existe quando há alguém por trás gerando seus interesses através dela. É claro que é importante que haja campanhas de conscientização a respeito dos T&C, mas é complicado exigir isso agora, em um mundo tão acostumado a só ‘concordar sem ler’ e tomado de assalto por essas novas tecnologias. Portanto, a curto prazo, o fundamental é se manter sempre atento ao que surge no mundo, além de sempre se colocar em jogo. A pergunta que deve ser feita é: ‘Como essa nova ferramenta pode me atingir? Como eu posso evitar que as consequências ruins disso cheguem até mim?’. O resultado disso já vai ser uma análise mais cuidadosa em relação a tudo que uma pessoa assina na vida”.