Por Victor Trovão
Dia 9 de abril, uma manhã de um sábado nublado acompanhado de uma garoa esporádica. Os vagões da linha azul do metrô surpreendentemente estavam cheios naquele horário, as placas pontuavam duas saídas, uma para a avenida e outra para a praça, esta, a qual a maioria das pessoas seguia. Talvez pelos cheiros, pelos sons ou simplesmente pela movimentação coletiva que guiava ao local. Um aglomerado de barracas vermelhas, comidas asiáticas, doces recheados com feijão, pessoas das mais diversas partes comendo, conversando e explorando a feira. Uma praça que conta a história da cidade, de povos que por ali passaram e construíram suas vidas, costurando até se tornar o bairro da Liberdade, na metrópole paulistana.
O que mais impressionou naquela manhã não foram os postes com luzes japonesas, nem as pessoas vestidas de cosplay, ou até mesmo a fila incontável de famílias esperando pela tigela de Yakissoba, mas sim, um grupo distinto de jovens parados na frente de uma porta laranja, que contavam cada segundo por algo. Eles aguardavam por uma aula, uma aula singular, que não se poderia imaginar que seria sediada ao entrar no corredor por trás daquela porta e subir um elevador que demorava mais do que o esperado.
Ao entrar na sala, os alunos das mais variadas idades se espalharam pelo espaço, se alongaram apoiados nas paredes cinzas e cantarolavam músicas que já tinham alguma familiaridade. Dentre eles, estava a professora, que não se diferencia muito dos estudantes, de rabo de cavalo e uma camisa bem solta e leve, ela ligou o som, propôs um alongamento e em seguida ligou uma música chamada “Eleven” quase no volume máximo. E ali iniciou-se uma aula de dança de um dos ritmos musicais mais famosos da contemporaneidade, K-pop (Korean Pop).
Cada pessoa na sala embora compartilhassem o gosto do mesmo estilo musical eram extremamente diferentes, a faixa etária era dos 15 aos 30, altos, baixos, paulistanos e naturais de outras cidades, eles se juntam regularmente aos sábados pela manhã para estudar essa face da expressão corporal. O alongamento logo iniciou-se, alguns pareciam mais tranquilos em sua execução, outros nem tanto, pois a flexibilidade e força estavam sendo exigidos ao máximo a fim de que nenhum deles pudessem se machucar no decorrer da aula.
Embora o mundo esteja gradativamente conhecendo o K-pop dada a explosão das músicas, cada vez mais ele também se conecta com a dança que acompanha as canções. Um dos marcos importantes da trajetória do gênero foi quando “Gangnam Style”, uma música de PSY, foi recebida muito bem no ocidente e abriu os olhos para muitas pessoas sobre o potencial das manifestações artísticas que aconteciam há anos na Coreia do Sul. A partir disso, com a atenção voltada para lá, o investimento governamental na cultura, o aprimoramento de técnicas artísticas e o trabalho árduo possibilitou com que naquele país surgissem empresas, dedicadas a explorar esse novo território, que hoje impacta diversos países, especialmente no Brasil.
Três grandes nomes foram importantes para criar o que podemos chamar de a “fórmula do K-pop”, são eles YG Entertainment, SM Entertainment e JYP Entertainment. A partir deles, diversos artistas e grupos nasceram após o período de trainee, o qual os jovens que possuem aptidões e o sonho de se tornarem artistas são submetidos para treinar e adquirir as habilidades vocais e em dança que precisarão ao longo de sua carreira. Os anos de treinamento não são fáceis, a pressão em se enquadrar nos padrões e na qualidade que as empresas desejam são altas. Apenas aqueles que demonstrarem esforço, talento e foco serão vistos como possíveis artistas a serem lançados.
Os mais fortes terão que passar por esse treinamento para enfim debutar, pode se ver como esse período funciona observando o grupo Blackpink por meio do filme documentário "BLACKPINK: Light up the sky", dedicado a um dos maiores nomes da música internacional, é mostrado como as integrantes treinaram por cerca de cinco anos em sua adolescência até estrearem em 2016. Por meio de blocos de quatorze dias de prática e um de descanso, elas tinham cerca de 4 aulas de dança por dia, tirando os ensaios por conta própria, fazendo as começarem pela manhã e finalizarem pela noite. Essa dinâmica, inevitavelmente, trabalha na construção de dançarinos incríveis em nível profissional, o que é exportado ao mundo por meio das performances, shows e music videos.
Por meio da composição da estética do K-pop, é explícito como cada detalhe é pensado para que se atinja a perfeição. Os movimentos, as posições e o desenho coreográfico trabalham para que os telespectadores não tirem os olhos da performance por um segundo, e de fato isso ocorre. Pela qualidade das apresentações, ocorre o efeito borboleta àqueles que já possuem certa experiência na dança e aos que nunca dançaram na vida. Por meio da visualização das coreografias na internet, os jovens aprendem cada movimento, ainda que demore muito para acertá-lo. Os que já possuem certa experiência com a dança acabam tendo um pouco mais facilidade em questões de interpretar a batida e a fluidez dos movimentos, no entanto, a execução em si passa por obstáculos dada a rapidez, a qualidade de movimentação exigida e a respiração.
A aula estava prestes a iniciar, e antes disso a professora se viu desafiada a responder alguns questionamentos dos alunos sobre a atividade. Com perguntas e queixas desde o porquê mesmo treinando a semana toda continuavam a fracassar na tentativa a dores em partes do corpo pelo treino que começou a fazer, o questionamento deles era visível. Ela certamente já conhecia aqueles rostos de preocupação e leve desânimo. A nuvem de incertezas e inseguranças sobre o estar ali eram enormes, mas por meio de uma boa conversa e palavras de alguém que já estava na indústria há anos, a poeira baixou.
Citando alguns exemplos dos maiores dançarinos do pequeno país da Ásia, foi contada a história de anos deles e sua relação com a dança. O profissionalismo era obtido a partir de uma receita simples e seca: treino, treino e mais treino. Para conseguir, resiliência é a única coisa que não se pode deixar de lado. Os jovens aspirantes a se tornarem artistas treinam a um ponto em que pegar uma coreografia inteira se torna rápido e com o passar do tempo, demoram cada vez menos tempo para aprender. É preciso esforçar e conhecer o corpo, entendê-lo, para que a dificuldade não seja vista como impossível.
Outro objetivo é a criação de memória muscular. O nosso cérebro tem a capacidade de guardar as informações com muito mais facilidade do que o corpo. Este, precisa de mais tempo e mais prática para conseguir recordar facilmente. Para alcançar tal nível de dança, é preciso que essas duas partes estejam extremamente conectadas. O corpo precisa associar os movimentos na mesma velocidade que a mente. O que de início raramente acontece. Ela conta como conseguir essa conexão e enfatiza: treino.
A aula programada para durar durante uma hora e meia começa. A coreografia escolhida para o dia foi “Maniac” de Stray Kids. Os 90 minutos são separados igualmente para os alunos se dedicarem à música e também a um treino específico que pode envolver alguma parte do corpo como explorar o uso das pernas, do tronco ou dos braços. Até mesmo uma movimentação mais técnica como isolation ou body wave, que constantemente são notadas nas danças dos grupos do ritmo musical.
O primeiro passo envolve os quadris e a rotação das pernas rapidamente. Os braços não ficam parados e se movimentam de acordo com a voz dos cantores. Simultaneamente, a cabeça precisa desenhar o passo junto às outras partes do corpo. Em seguida as posições mudam, as pessoas que estavam na frente se deslocam para trás. A aula segue com a mesma energia até a sua finalização. Tudo muito rápido, os alunos são convidados a treinar a dança por inteiro após o término por diversas vezes. Trata-se de uma técnica que usa da repetição para que consigam alcançar os maiores resultados.
No decorrer da aula, é visível como algumas pessoas realmente não conseguiram captar todos os movimentos ou então interligá-los. É proposto que eles façam algo difícil, com o qual não estão habituados justamente para conseguirem identificar o avanço. Seria bem mais difícil notar a melhoria e uma boa execução caso fosse passado algo fácil e curto. Os alunos são instigados a se esforçarem mais, e em seguida notam o impacto disso.
Um dos fatores que com toda certeza contribuem para que a dança do gênero seja extremamente diferente do que se está acostumado são suas composições. O K-pop é um ritmo musical, um gênero único desenvolvido na Coreia do Sul, que em muitas das suas músicas misturam se o pop e rap. Já a dança que acompanha o estilo musical não é a única e desenvolvida no país. Desde a década de 90, quando a semente do que hoje conhecemos do gênero foi plantada, a coreografia aderiu a sua composição outros estilos de dança de diversas partes do mundo. Entre eles estão o street dance, stiletto, pop, balada, eletrônico, locking, contemporâneo e bastante hip-hop. Juntos eles são colocados em partes específicas das músicas e costuram as coreografias surreais que existem nos grupos.
Nos momentos finais, pelos quais os alunos podem descansar um pouco ou se alongar para irem a caminho de suas casas, uma curiosidade surge. Poucas pessoas sabem como uma coreografia do K-pop é produzida. Raramente são os próprios artistas que as criam para suas canções, na verdade as empresas que gerenciam eles que ficam responsáveis por isso. Na finalização de um vídeo clipe do gênero é bem comum que na parte final os coreógrafos sejam creditados, e o que surpreende é que na maioria das vezes estão mais de duas pessoas, ou mesmo um grupo de coreógrafos que a criaram. E o mais interessante, talvez eles nunca ao menos se conheceram mas trabalham juntos em algo.
A dinâmica da produção das danças marcantes e que legitimam a fama dos grupos está na proposta das empresas. Ao terem alguma música demo pronta e precisarem da dança para ela, eles escolhem diversos coreógrafos pelo mundo e enviam a canção com alguns ruídos e repartições para que não seja vazada antecipadamente. Os dançarinos então possuem uma data para entregar seu projeto. Cada um deles entregam sua dança autoral e enviam para as empresas após serem pagos. Agora, é a vez da empresa de trabalhar com dançarinos que já estão acostumados e delimitar quais partes entram, em quais momentos e de quem entra ou não.
Se torna uma verdadeira salada, com contribuições de muitos dançarinos para se chegar ao produto final. Em algumas ocasiões, boa parte de uma proposta é incorporada caso ela se encaixe bem com a música e os integrantes do grupo, já em outras apenas dois ou três movimentos conseguem ser utilizados na canção. Eles são pagos pela proposta inteira que enviam para análise e caso seus movimentos sejam realmente anexados na composição da coreografia, eles são pagos com mais uma porcentagem pela utilização.
Ao longo daqueles minutos, muitas questões foram feitas e respondidas, porém era preciso entender os motivos e razões mais profundas pelas quais aquelas pessoas acordavam cedo num sábado de manhã para estarem ali. Uma garota de 15 anos, era motivada a ir porque não tinha nada para fazer no dia e gostava da banda BTS. Um rapaz, no auge dos seus 18 anos, fazia duas faculdades e usava aquele momento para relaxar e fazer um exercício físico. Outra moça de 21 chegava à sala assiduamente para explorar o que era a dança, pois nunca havia entrado numa aula como a que estava durante toda sua vida. Diversos motivos explicam o porquê aquelas pessoas estavam tão ligadas com aquela manifestação artística. Dentre as dezenas de casos mais singulares que estavam ali, um dos que mais marcou aquela manhã foi o de um garoto que durante toda sua infância sonhava em poder dançar, mas por pressões na escola e em casa nunca pode realizar esse desejo. Embora tivesse aptidões notáveis, apenas podia dançar quando estava sozinho em casa. Sua vida mudou durante o ensino médio ao se apaixonar pelo K-pop e se conectar com a dança dos artistas. Agora, ele usava daquele momento para explorar todo seu potencial e usar do ritmo como uma ferramenta para atingir o sonho de criança.
Com os mais particulares motivos, não se pode deixar de lado que a arte do dançar sempre estará ligada a liberdade de expressão e uma forma pela qual as pessoas podem se comunicar com as outras. Essa seja uma das principais, se não a razão principal para todas aquelas pessoas estarem ali. Nosso corpo possui a necessidade pura de se expressar. Isso acontece desde a nossa infância e construção como indivíduo e perdura até os momentos finais. Ser humano é sentir a tudo e tanto, o que não fica apenas nas sensibilidades tátil, auditiva ou visual, mas também em movimento.
Com inúmeras reflexões que ficaram em mente, a aula infelizmente chegou ao fim. Alguns dos alunos mal podiam esperar para chegar em casa e ensaiar mais um pouco, outros estavam notoriamente cansados. No caminho para a estação nem todos iam direto para sua casa, eles aproveitavam como aquela parte da cidade explorava uma das coisas em que mais gostavam e assim aproveitavam para comer comidas locais, comprar itens que vieram da Coreia do Sul e curtir o restante do sábado. Infelizmente, muitas das pessoas que estavam naquela sala não encontraram ou encontrarão o melhor contexto no país para se tornarem dançarinos profissionais.
A realidade assistida na Coreia se difere bruscamente do Brasil, um dos países com a maior revolução tecnológica na Ásia não deixou de investir em sua cultura e a exportação dos produtos culturais para fora. Essa atividade aconteceu por meio de décadas e hoje é possível ver os resultados disso no mundo como o retorno para o país. É inevitável que com esse cenário os jovens olhem para o mundo artístico como uma opção a ser seguida e respeitada, mesmo que exista concorrência e inseguranças, lá a mágica acontece e as chances de criar uma carreira na indústria são altamente maiores do que no aqui. Embora o Brasil seja amplamente visto como um país muito ligado à dança internacionalmente, essa visão se destoa da realidade. Com pouquíssimas oportunidades de crescimento, artistas de todas as partes dos país veem seus talentos serem negligenciados e seus sonhos apagados pela falta de investimento na cultura local e na dança da forma que deveria acontecer. Ainda sim, muitos deles lutam suas batalhas diárias para sua legitimação como profissionais e com talento e um sonho eles se desdobram para conseguir se desenvolverem em meio ao caos.
Olhando para os vagões cheios do metrô e assistindo a uma breve apresentação de dançarinos de rua na multidão foi possível notar como a dança está ligada às pessoas. Com a explosão do K-pop e sua influência na vida de jovens em diversos países, a dança em geral só tem a ganhar com tantos talentos e forças que se somam a essa arte. Do ballet ao street dance, todas as modalidades costuram o que hoje entendemos como o que é dançar. O novo gênero musical contribui ativamente para essa manifestação artística e espera-se muito de seu impacto no decorrer dos próximos anos. Observando como essa atividade, compreende-se a forma pela qual o K-pop é utilizado como uma ferramenta que movimenta uma geração e sua cultura ao somar cada vez mais seus dançarinos e jovens talentos ao universo da dança. O ritmo que antes era mal visto ao distinguir as produções conservadoras e nacionalistas do país, se posiciona como uma das maiores apostas da música internacional e cresce o número de fãs em cada país.
Por meio dessa experiência de vivenciar um pouco mais desse universo, por quem e como é composto, uma das partes mais interessantes foi analisar uma das faces pela qual a conexão da humanidade com a dança acontece. Não importa sua raça, gênero, sexualidade ou condição financeira, todo ser humano nasce ligado a isso. Ao longo de toda a história da arte no mundo, na dança as pessoas puderam encontrar um espaço que as abraçasse e respeitasse a suas existências. Se tornaram tão próximas a ela que não poderiam se imaginar sem essa parte de sua vida. Os desafios para os dançarinos do mundo não acabarão de um dia para o outro, a esperança consiste em continuar independente do que acontecer.
“O amanhã que estávamos esperando se torna ontem em algum momento”
- BTS