O sol da tarde entra pelos vidros do vagão moderno que corre para o centro de São Paulo, os rostos se viram, olham e voltam para as telas de brilho artificial, alguns continuam a observar. A cantoria que vem do lado tem história, tem poder, objetivo, e vem de dentro, do vagão e da alma. “a rotina do vagão é uma terapia realmente... e a música transformou a minha vida, não só por ela pagar as minhas contas hoje, mas por tudo que ela já fez, as coisas que já vivi foi através da música, através do vagão, e transformar o dia das pessoas é uma coisa que não tem preço”.
Em dupla, me contam suas histórias. Guitta tem 34 anos, carioca, vivia em Volta Redonda e veio para São Paulo em 2009. Após ter perdido a família, explica, em baixo tom e meio rouco, que morou na rua por muito tempo, “conheci muitas “coisas boas” né, as drogas, a cola o crack”. Acolhido por uma ONG, que lhe deu a oportunidade de aprender a tocar instrumentos, saiu das ruas para trabalhar com a música. É aquele que não põe valor em transformar o dia dos outros e se dispõe a ser transformado.
“São várias situações malucas que você pensa: só no vagão para acontecer isso, a pessoa se levantar e falar com você “posso te dar um abraço? Você cantou uma música que lembra do meu filho e eu não tenho mais meu filho hoje aqui” e se derramar em lágrimas, ou “perdi meu pai, precisava ouvir alguém”. São situações que a música coloca a gente, não tem preço, não tem valor, não tem moeda que pague um negócio desses”.
Do lado esquerdo, atrás do corrimão das escadas que encostei no meio da estação, ouço o Dagmar, de 26 anos, filho de pastor, aprendeu a tocar no ministério e vive no mundo da música desde os 13 anos. Enxerga o metrô como uma escola, aquela que melhora a qualidade do som e mostra a variabilidade do público, do povo. O objetivo de Dag é ser a voz da sociedade brasileira.
“A arte é uma forma de expressão, e tem muita gente que se cala diante de coisas que não são para ficar quieto, então a arte ajuda a gente a falar, a arte é a voz do povo. Botar a boca no trombone, você se expressar dentro de uma letra, de uma canção, é maravilhoso”. Quem não gosta, quem reclama e não ouve não foge ao seu foco, o músico está nesse mundo para mudar opiniões.
No vagão, a música é o instrumento. Dois homens e dois violões, carregam o sonho de gravar CDs e eternizarem suas vozes e mensagens, salvam vidas. A dupla canta MPB, samba, rap, forró e o que a Música Popular Brasileira permitir de encaixe. Ambos lembram aos que se sentam nos bancos azuis o legado de protesto, paz, amor e vida que a música brasileira carrega. Cantando todos os dias pelas estações da linha vermelha, os itinerantes já viram e viveram todo tipo de histórias e criticam fortemente a vida forçada dos seres da capital.
“Hoje os valores infelizmente estão sendo invertidos, o sistema obriga a gente a viver uma vida monótona, uma vida sem muitos prazeres ou até objetivos nossos, pessoais, só de pagar as contas e viver um dia de cada vez assim... o stress, a depressão é o que rola, é a doença do século, e a gente está para combater isso, através da arte, da música e da cultura”, explica o carioca.
Dag conta que já se deparou com várias pessoas no metrô que estavam prestes a se jogar na linha, “cê olha, canta, faz um som e tenta uma forma de comunicação, isso muda o dia das pessoas”. E esse é o cenário brasileiro e dos cantores que fazem para além de música. A pandemia rendeu 25% de aumento nos casos de depressão e ansiedade no mundo em seu primeiro ano, segundo a OMS, e atingiu o cotidiano de todos por aqui. A tensão é aliviada com a arte, tanto para o artista quanto para o público.
Vivendo no centro da desigualdade da cidade, os artistas criam uma consciência social que seria impossível sem a vivência das ruas e dos trajetos. O som é influenciado pelo cotidiano, pela vida na cidade, e cada detalhe é reparado. A mulher que anda no escuro sem segurança, os hospitais sem leitos, as mortes de frio na rua, são os sintomas reconhecidos da negligência do Estado e da crise do atual governo. O destino do balanço das cordas dos violões não é só entretenimento, como aquele que passa na TV, o agro passa longe de ser pop por aqui, a ideia é lembrar às cabeças baixas que “está tendo uma guerra, é só olhar para o lado e você vai ver”.
A desigualdade é a realidade e as palavras ritmadas são o melhor jeito de gritar. Guitta deixa claro quando me diz que esse trabalho “é relatar nossa vida, você vai no interior, vê o sertanejo contando o que ele vive ali, vai na periferia e vê o rap, é a realidade dele, a nossa realidade é um tapa na cara, a desigualdade social, essa coisa de classe, a pessoa não conseguir comer direito uma vez ao dia, e por quê? O que a gente fez para merecer todo esse destrato. A gente precisa falar disso, a fome e a miséria ainda existem no Brasil, o país que joga toneladas de comida fora”.
Conduzido pela Rede PENSSAN e divulgado no início de junho, o Inquérito Nacional de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil aponta que 33,1 milhões de brasileiros vivem em situação de fome no país. Eram 19,1 milhões no fim de 2020.
São duas vidas, dois narizes que respiram Brasil, no estilo cantado e na realidade individual. Os seguranças estão ali para lembrá-los todos os dias que os seus sons estão fora da legalidade, segundo o site do metrô, tem que se inscrever para cantar por lá, e quando a empresa decidir, mas eles lembram aos passageiros que eles estão ali para “ficar bem à vontade e na verdade são assim, descobridores dos sete mares”.
Depois de perguntar sobre como os passageiros reagem, eu, a entrevistadora , virei o foco. “como você reage quando alguém entra cantando no vagão?”. Minha própria resposta de passageira foi de que ajudo quando posso, mas sempre presto atenção. Os artistas me explicam que lidam com todo tipo de gente, os que se incomodam, os que gostam… e aproveitam para me perguntar sobre a vida de jornalista. “e no seu trabalho? Como as pessoas regem?” Os itinerantes não passeiam apenas pelos vagões, mas pela vida real daqueles que passam por eles. Expliquei os desafios de ser repórter e entrevistar pessoas em diferentes condições, nunca se sabe o que vai chegar até você.
Conversamos um pouco sobre os lugares que conhecemos pelo Brasil antes de me convidarem para ouvi-los tocar no trajeto de uma linha que vai conectando nossas vidas. Para minha surpresa, os dois já caminharam por cidades da Bahia, o Estado de onde vim.
E ao som de “Descobridor dos Sete Mares” do Tim Maia, na voz de Guitta e Dagmar, viajo até a nossa última parada, sobre as linhas de ferro do metrô, que se encaixam nos versos Populares Brasileiros das próximas estações e nas linhas de outras vidas.