O surgimento do Robin Hood às avessas

Como as bets têm roubado dos pobres para dar aos ricos
por
Leonardo Gomes
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16/04/2025 - 12h

Imagine passar um longo tempo trabalhando longe e, ao retornar, encontrar sua comunidade (neste caso, feudo) devastada por leis abusivas e pela proibição de meios de subsistência. Insurgir-se é preciso! No entanto, você é declarado "fora da lei". Contudo, não baixa a cabeça e, valendo-se de seus amplos conhecimentos técnicos, assim como de seu capital social, nos termos de Pierre Bourdieu, reúne um grupo de "perseguidos pelo sistema" e dá início a um combate contra a tirania da nobreza, passando a roubá-la para distribuir aos pobres. Essa é a história de Robin Hood. Agora, imagine seu exato oposto: um sistema que, em vez de tirar dos ricos, subtrai o pouco dos mais necessitados. Esse mecanismo existe, é a "bet" ou casa de apostas.

O termo "bet" vem do Inglês "bette", que significa aposta. Esse tipo de jogo é realizado exclusivamente on-line, havendo inúmeros sites que oferecem esse tipo de serviço. Para apostar, o usuário deve realizar o cadastro em algum desses sites, fazer um depósito e selecionar, entre diversas competições esportivas, pelo menos uma partida, cujo resultado é transmitido em tempo real. Como forma de estimular a aposta em um determinado evento, são exibidas suas "odds". O termo "odd" nesse caso significa "probabilidade", e refere-se à chance de um resultado acontecer.

A razão entre a chance de determinado resultado ocorrer é inversamente proporcional ao valor pago pela casa de apostas. Por exemplo, digamos que o Palmeiras joga em casa contra o Sport. As "odds" antes e no início do jogo serão maiores — pagará um múltiplo maior da quantia apostada em caso de vitória do time visitante. Todavia as "odds" são dinâmicas, ou seja, mudam de acordo com o resultado e com a proximidade do término da partida. Neste mesmo exemplo, se o placar estiver Palmeiras 0 x 5 Sport e faltando 10 minutos para o fim do jogo, a casa de apostas oferecerá um retorno altíssimo para quem apostar na virada do mandante, devido à baixíssima probabilidade de esse resultado ocorrer.

O problema desse tipo de aposta é que ela transmite uma falsa sensação de lucro fácil e controle da situação. Entretanto, pode levar os apostadores a prejuízos financeiros e ao vício. As empresas desse setor investem muito dinheiro na divulgação de seus serviços, contratando celebridades e influenciadores digitais, que vendem a narrativa do lucro fácil e rápido. Em um país com imensas desigualdades como o Brasil, esse tipo de jogo prospera explorando as fragilidades culturais, sociais e econômicas da população. No YouTube, por exemplo, há inúmeros relatos de pessoas que perderam grandes quantias nesse tipo de aposta. Em um desses vídeos, o youtuber Anselmo Bulgarelli relata ter perdido mais de meio milhão de reais nesses sites de apostas.

Segundo a psicóloga e Doutora em Psicologia Ivelise Fortim "as 'bets' operam por meio da ativação de sistemas de recompensa cerebral, explorando os mecanismos de reforço intermitente variável. Esse é um tipo de condicionamento em que a recompensa (dinheiro, vitória) acontece de forma imprevisível. As interfaces são desenhadas com padrões manipulativos, que exploram esses mecanismos, fazendo o jogador acreditar que tem controle sobre a situação (o que não é verdade, pois muitos jogos, além de aleatórios, são manipulados), incentivando a continuidade do jogo. Também existe o fato de que esses reforços são muito rápidos (a pessoa já sabe se ganhou ou perdeu rapidamente), fazendo com que o ciclo do jogo se mantenha.  Essas plataformas utilizam estratégias de gamificação — como bônus por fidelidade, recompensas visuais, notificações e rankings para tornar a atividade mais divertida".

Fortim reforça ainda que "pessoas em situação de vulnerabilidade muitas vezes veem nas apostas uma possibilidade de mudança rápida de vida. Também existe a ilusão de que a saída da pobreza será fácil, rápida e sem esforço. Isso é alimentado pelo discurso de influencers que falsamente prometem ganhos extraordinários. Essa também é uma população que tem menor educação financeira e menor literacia digital, ou seja, podem ser menos críticos a propaganda enganosa e mecanismos de manipulação. Mas a pobreza não é a única variável para a dependência de apostas, dado que este é um problema que também afeta classes sociais mais altas".

Embora complexas, há formas de mitigar os efeitos das "bets" sobre o comportamento dos usuários. Para Ivelise, "as estratégias de prevenção devem ser em diversos níveis. A educação midiática, a educação financeira, o pensamento crítico em relação à publicidade e ao funcionamento das apostas, são estratégias importantes. As apostas, embora pareçam escolha individual, são influenciadas também por estruturas sociais e problemas sociais como  a precarização do trabalho e a ausência de políticas públicas para essas populações. Outros aspectos a serem considerados são a regulação da publicidade e a regulação do funcionamento das 'bets', especialmente voltada para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. A responsabilização das empresas que operam plataformas de apostas também deve ser considerada, pois as empresas deveriam adotar práticas éticas e de não manipulação".

Enquanto as apostas forem vendidas como esperança, restará à sociedade a missão de lembrar que o verdadeiro jogo — o que realmente importa — acontece em outro campo: o da justiça social.