O silencio, a arma que aponta para as mulheres

Sobrevivente de violência doméstica explica como o medo é utilizado para perpetuar a violência contra às mulheres e destaca a importância de dar continuidade no processo contra o agressor
por
Patrícia Mamede
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31/03/2022 - 12h

O cotidiano da mulher carrega números assustadores dos mais diversos tipos de violência. Entre elas a violência física, psicológica e sexual. No Brasil, as ruas são tão perigosas para as mulheres quanto seus lares, visto que a maioria dos abusos acontecem dentro de casa, onde seus agressores são, na maioria das vezes, alguém com quem tem que dividir a cama. Uma pesquisa realizada pelo DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher Contra a Violência aponta que 68% das mulheres brasileiras conhecem uma ou mais mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar . A pesquisa coletou informações de 3 mil pessoas, das quais 27% já sofreram agressão por um homem. Em 2014, o Instituto Avon em parceria com DataPopular indica que três a cada cinco mulheres já sofreram algum tipo de violência em relacionamentos.  A Agencia Brasil diz que a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos parece confirmar um aumento de 36% nas violações aos direitos e à integridade das mulheres com a chegada da pandemia.
 

Isabella C., sobrevivente de violência doméstica, estudante de Investigação Forense e Perícia Criminal é também comunicadora e utiliza das redes sociais para abordar temas como a violência doméstica e outras pautas feministas. Isabella diz que o silêncio é o maior aliado dos homens, ‘’Os homens só fazem o que fazem porque eles já contam com o nosso medo’’. A sobrevivente relata as dificuldades de atravessar um processo judicial contra seu ex-namorado investigado pelos crimes de: estupro, estupro de vulnerável, violência psicológica, coação no curso do processo e perseguição, além de ser réu em ação penal por descumprimento de medida protetiva. Conforme reportagem publicada pelo jornal Estado de Minas, em 30 de janeiro de 2022, o fotógrafo de surfe Mateus Prior Barbosa é apontado como o agressor de Isabella. A reportagem baseia-se nas postagens realizadas pelo próprio em suas redes sociais .


            ‘’Como estudante de criminologia - e não de direito -  tenho um problema sério com o sistema de justiça criminal brasileiro, porque ele não educa e nem evidencia os verdadeiros problemas. Os princípios básicos do direito, como o in dubio pro reo, são pensados e fazem sentido quando tratamos, por exemplo, de crimes patrimoniais, que é o que interessa pro Estado. Não são a dignidade sexual, a integridade física e psicológica das mulheres que interessam ao Estado, e sim a sua exploração. O sistema penal não é pensado pela ótica de quem é vítima da violência masculina, mas sim pelos próprios agressores’’. A comunicadora verbaliza a insatisfação em relação ao andamento do processo, criticando as instituições. Mas diz que apesar de todo trabalho e toda a burocracia é importante que mulheres não deixem de relatar, ‘’Embora o trânsito das ações possa ser, sim, uma via para a retraumatização, para revitimização, é também uma cura’’ argumenta, ‘’É importante que as sobreviventes não se corrompam no meio desse processo, sabe? Que elas entendam o peso que tem, na vida de todas as mulheres,  cada caso que se torna midiático. Denúncias, processos, absolvições e condenações de crimes cometidos por um homem contra uma mulher, não são apenas sobre esse homem e essa mulher, são sobre toda a sociedade’’.

Apesar da realidade econômica de algumas mulheres não possibilitar uma renda suficiente para contratar uma advogada, existem ONGs como a Mapa do Acolhimento, que oferecem apoio jurídico e psicológico gratuito para sobreviventes. Isabella diz que é interessante que as sobreviventes busquem conversar e avaliar a situação com o respaldo da justiça, pois algumas ações precipitadas como exposed ou a difamação do agressor podem certamente prejudicar a vítima. A advogada Natalia Veroneze, que possui um escritório de advocacia feminista, adverte: "o agressor pode te acusar de difamação e de outros crimes contra a honra. Sempre converse com sua advogada antes de falar com a imprensa ou de postar nas redes sociais’’ e complementa, ‘’se não tiver como pagar, procure a Defensoria Pública no Núcleo de atendimento às mulheres’’.

O medo é o maior fator que leva as vítimas a não denunciarem, muitas vezes, por influência da mídia sensacionalista que busca ofuscar as vitórias de alguns casos, enfatizando as derrotas daqueles em que as vidas das vítimas foram totalmente destruídas,  como por exemplo, o caso da Mariana Ferrer. ‘’A mídia quer fazer parecer que uma condenação é impossível, mas é apenas difícil. É preciso compreender o sistema e, assim, descobrir como enfrentar ele, tendo o que ele não quer que a gente tenha: provas, estratégia e saúde mental. A certeza da impunidade dos homens é tão grande, que eles se incriminam sozinhos’’, coloca Isabella, ‘‘O sistema, ele faz de propósito, ele quer que a gente se mate no meio do processo, que a gente desista de tudo e de nós mesmas, só que às vezes ele não consegue. E quando isso acontece, o efeito é exatamente o oposto: acaba criando monstros, que é o caso da Mariana, o da Duda Reis e o meu também. Quem deseja que a gente perca alguma coisa, já pode começar a chorar’’. Apesar do sofrimento que as sobreviventes carregam ao longo do processo, a comunicadora aponta um lado que é pouco mostrado pela mídia no caso de Ferrer, ‘’Um homem não foi condenado - até agora -, mas duas leis já foram criadas a partir desse caso. Então o sistema pode tentar o quanto quiser, não vai adiantar, sempre vai haver mulheres que se recusam a desistir. E não adianta apenas aprovarem as leis, nós vamos exigir que elas sejam cumpridas’’, explica.

Além da palavra da vítima, Natalia cita outros recursos que podem ser utilizados como provas: "vídeos, prints de WhatsApp (exclua o nome é deixe apenas o número à mostra. Mostre a data. Se tiver grana, peça transcrição da conversa no cartório)’’. Em casos de violência psicológica a advogada sugere ‘’laudo psiquiátrico, laudo psicológico, depoimento de testemunhas que tenham acompanhado a evolução da vítima, laudos de afastamento por pânico, Burnout ou surto psicótico, entre outros’’. A elaboração de provas é importante para construir um processo sólido, no entanto, Isabella percebe que existe uma dificuldade das vítimas na hora de avaliar os recursos que podem ser utilizados, "As mulheres não entendem o que é uma prova, e a infinidade de elementos que podem ser usados como prova’’, adverte, ‘’quando você treina o seu olhar, você vê que tem provas em absolutamente tudo. Você vai entendendo como se constrói uma narrativa que reconstrói os fatos’’, explica a sobrevivente. Aplicativos do próprio celular como, Saúde, Flo e Uber foram utilizados enquanto importantes recursos no seu processo.

 Mediante toda a violência que as sobreviventes são expostas durante todo o processo, Isabella aponta para uma questão que é necessária por parte de todas as mulheres: a rede de apoio. "É importante esse apoio entre mulheres, porque hoje sou eu e amanhã é você’’. A comunicadora salienta que este é o papel da ética feminista nisso tudo, ‘’Não pode mais haver seletividade para escolher acreditar ou não na palavra de uma vítima. Esse é o maior problema e a maior função do feminismo nisso. Acreditar nas mulheres, acreditar na palavra da vítima e não deixar que ela carregue esses processos sozinha, porque eles são feitos para nos destruir, mas se tivermos uma boa rede de apoio podemos sobreviver’’, afirma. Natalia também ressalta a importância de uma advogada com um estudo feminista na hora de buscar alguém para acompanhar o caso, "é imprescindível. Por isso ano passado o CNJ lançou o Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero. Para capacitar os juízes, desembargadores e serventuários a ter perspectiva de gênero na defesa de mulheres e meninas’’.

Registrar a ocorrência se faz importante em qualquer caso, pois por mais que o agressor não seja condenado no processo de uma determinada vítima, uma acusação ou indiciamento marcará o histórico em seu nome, ''Quando um mesmo homem comete crimes contra outras mulheres, já na investigação é possível compreender que as violências fazem parte de um comportamento reiterado dele. Além disso, políticas públicas só são criadas a partir de estatísticas. Somada à óbvia negligência do Estado, a subnotificação também é responsável pela precariedade dos sistemas de acolhimento, a falta de capacitação dos agentes que atuam nos casos e a compreensão das verdadeiras dimensões desses problemas'', explica Isabella. ‘’A coragem para relatar tem que sair do mesmo lugar de onde saiu a coragem do homem para fazer o que fez: eles acham que agredir é direito deles, nós sabemos que uma vida sem violência é direito nosso’’, encoraja a sobrevivente.