O programa que morreu antes de nascer

Abortado por Bolsonaro, Renda Brasil vinha sendo citado como substituto do Bolsa Família
por
Daniel Gateno
|
21/09/2020 - 12h

O presidente Jair Bolsonaro anunciou na semana passada a decisão de abortar o programa social que vinha sendo anunciado como um substituto do Bolsa Família. Estimulada pelo aumento da popularidade do presidente propiciado pelo pagamento do auxílio emergencial, a decisão de criar um novo programa – batizado de Renda Brasil – foi cancelada por Bolsonaro supostamente por exigir condições consideradas inaceitáveis por ele, como a suspensão de outras políticas voltadas para a população de baixa renda.

O Bolsa Família foi criado em 2003 pelo governo Lula e se tornou uma marca das gestões petistas. Atualmente, 14,2 milhões de famílias são beneficiadas pelo programa, que consiste em uma transferência direta de renda para famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza.

O programa nunca foi unanimidade, mas sempre foi mantido pelas gestões posteriores à do governo Lula. “O Bolsa Família tem a chancela do governo Lula, é um dos carros-chefes dele e uma das razões que fez com que ele se reelegesse e elegesse a Dilma. A oposição sempre falou mal do programa porque precisava fazer uma contraposição ao Lula”, analisa Camila Kimie Ugino, professora do departamento de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Nenhum candidato tirou uma proposta de transferência de renda de seu programa de governo, pois é visível o seu impacto social.”

Segundo dados de reportagem do Estado de S.Paulo veiculada no dia 22 de agosto, o Renda Brasil estava sendo projetado para atender 8 milhões de pessoas a mais que o Bolsa Família. A intenção do governo era colocar em prática a nova iniciativa no início de 2021, após o fim do auxílio que já foi confirmado até o final do ano pela equipe econômica.

O projeto do ministro da Economia Paulo Guedes, previa uma elevação do corte em relação à renda mensal dos beneficiados: de R$ 89 para R$ 100 por pessoa no caso de  famílias em extrema pobreza e de R$ 178 para R$ 250 por pessoa em famílias consideradas pobres. Além disso, o Renda Brasil estabeleceria um bônus para famílias que estivessem com filhos nas escolas ou em cursos profissionalizantes, assim como uma maior renda para mães com filhos recém-nascidos, até os três anos de idade.

A iniciativa do governo Bolsonaro vinha sofrendo retaliações e brigas internas que resultaram em rumores sobre a saída do ministro Paulo Guedes. Durante um evento no dia 26 de agosto, Bolsonaro criticou a sua equipe econômica e suspendeu o Renda Brasil: “Ontem discutimos a possível proposta do Renda Brasil. A proposta, como a equipe econômica apareceu pra mim, não será enviada ao Parlamento. Não posso tirar de pobres para dar a paupérrimos”.

O embate entre Bolsonaro e a equipe econômica teve mais um episódio, que aparentemente encerrou o projeto social antes de seu início. Na última terça-feira, dia 15, o presidente declarou que o Renda Brasil estava cancelado e que manteria o Bolsa Família até o final de seu governo. O chefe do Executivo ameaçou dar um “cartão vermelho” àqueles que defendessem o congelamento do salário mínimo, aposentadorias e o corte de benefícios pagos a idosos e deficientes.

A ira de Jair Bolsonaro teria sido provocada por uma entrevista dada por Waldery Rodrigues, secretário especial da Fazenda do Ministério da Economia. Rodrigues afirmou ao portal G1 que a equipe econômica estudava congelar benefícios previdenciários: ”A desindexação que apoiamos diretamente é a dos benefícios previdenciários para quem ganha um salário mínimo e acima de um salário mínimo, não havendo uma regra simples e direta [de correção]”.

A oposição ao novo programa é explicada pela necessidade de cortes em outros programas sociais, como o abono salarial (um salário mínimo a mais para pessoas que ganham até dois pisos), seguro-defeso (benefício dado a pescadores durante a reprodução dos peixes) e o salário-família (para trabalhadores formais e autônomos que são contribuintes da Previdência Social).

“Paulo Guedes está tendo um choque de realidade”, avalia Ugino. “Guedes é o atual ministro da Economia e está exercendo um papel político, por isso precisa aceitar as vontades do presidente em relação a esse programa mesmo sendo um ultraliberal”, comenta a acadêmica.

A professora acredita que Bolsonaro não deve perder o apoio do mercado financeiro por conta do Renda Brasil: “Para o mercado financeiro, é importante que a economia não tenha uma recessão profunda e a renda dos benefícios sociais retorna para a economia pelo consumo. Por isso, o programa social é benéfico em termos de consumo e funcional para a economia”. “O mercado financeiro está mais preocupado com as queimadas da Amazônia do que com o Renda Brasil”, acrescenta a docente.

O site The Intercept Brasil questionou o Renda Brasil e o aumento da popularidade do presidente Jair Bolsonaro em artigo publicado no dia 30 de agosto: “Quando era deputado, Bolsonaro defendia a extinção do Bolsa Família. Segundo ele, os beneficiários do programa eram “pobres coitados, ignorantes” e “eleitores de cabresto do PT”. Hoje ele disfarça esse mesmo pensamento com um discursinho de pai dos pobres”.

O projeto ficou fora do orçamento do ano que vem. Contudo, a verba destinada ao Bolsa Família foi elevada para R$ 34,8 bilhões em virtude do aumento de famílias que dependem do programa devido à pandemia da Covid-19.

Após as declarações que garantiam o Bolsa Família até o final do governo Bolsonaro, o presidente deu aval para que o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator do orçamento para 2021 e da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Pacto Federativo, viabilize um programa social que tenha a marca da gestão atual.

“O que o presidente quer é que o Congresso resolva de onde vai tirar o dinheiro. Ele não quer ficar com a marca de presidente que tirou beneficio dos pobres”, avaliou Júnia Gama, repórter do jornal O Globo em entrevista ao portal Infomoney.

O maior desafio do governo federal é financiar o novo projeto sem romper as regras estabelecidas pela Emenda Constitucional (EC) 95, que criou um teto para os gastos públicos durante 20 anos. Promulgada pelo governo de Michel Temer, a EC 95 é o grande empecilho da equipe econômica para fechar a conta e mandar o Renda Brasil para o Congresso. 

“Não existe financiamento”, afirmou o colunista da Folha de S.Paulo Vinicius Torres Freire ao podcast “Café da Manhã”, também produzido pela Folha. “É possível fazer uma emenda para furar o teto de gastos e fazer o Renda Brasil, mas isso seria visto como uma revolução e o mercado financeiro não reagiria bem com um aumento nas taxas de juros e a recessão seria pior ainda.” Torres Freire também analisou outras alternativas para que o programa seja realizado: “Poderiam estender o período de calamidade para o ano que vem e continuar distribuindo o auxílio emergencial. Seria uma forma de furar o teto, mas não sei se existe fundamento para que isso aconteça”. 

Em entrevista ao Estado de S.Paulo, o economista Armínio Fraga declarou ser improvável a duração do teto de gastos pelos próximos seis anos. “Ainda há necessidades prementes ligadas à pandemia e, a médio prazo, de natureza social e ligadas à produtividade do Brasil que demandam algum crescimento do gasto."