O idealismo iluminista da República soberana se faz esquecer da sujeira que esconde em baixo do tapete. O extermínio deliberado pelo Estado de aproximadamente 25 mil brasileiros comprova a insanidade inata encontrada na configuração da República brasileira. A guerra contra Belo Monte (Canudos), ocorrida há mais de 124 anos, ainda é extremamente atual, conforme afirma Sérgio Guerra, doutor em história com ênfase na guerra de Canudos: “O genocídio se deu em 1897, mas continua. Porque a população dos sertões continua sendo massacrada. Se você procurar ver as vítimas da Covid, são aqueles mesmos pretos, pardos e índios de sempre. Na realidade, o Brasil ainda vive essa política”.
De acordo com um estudo feito em fevereiro desse ano pelas pesquisadoras Ligia Bahia e Jéssica Pronestino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a taxa de letalidade varia de acordo com o nível de escolaridade, da cor da pele e do IDH dos municípios. Lugares com o IDH baixo tiveram 61,7% de mortes. Já os municípios com IDH muito alto ficaram com 32,9%. 56% dos pacientes brancos internados com síndrome respiratória morreram, contra 79% dos não brancos. Entre os pacientes sem escolaridade, 71,3% vão a óbito, contra 22,5% para os de nível superior.
“O Brasil foi montado a partir da invasão dos brancos, do genocídio da população indígena e da escravização da população negra e é esse resultado que vivemos até hoje” (Sérgio Guerra)
Canudos representou um, dentre inúmeros, massacres genocidas brasileiros. Em 1889, com a instauração da República na recente ex-colônia, poucos se sentiam realmente pertencentes a esse sistema. A realidade era uma via de mão única, que obrigava o pagamento de impostos sem nada em troca. O Líder religioso, Antônio Conselheiro, se recusava a pagar as taxas estatais, pois entendia que a República, por eles, nada fazia. E dessa forma, eram vistos como uma ameaça, que deveria ser combatida.
A execução em Canudos ocorreu de diversões formas. Não só a violência física foi crucial para esse acontecimento, como também o abandono do Estado e a justificativa ideológica - processo que autoriza o uso da violência. A alusão de Anti República e marginalidade foi indispensável para a aceitação e legalização do assassinato em massa, bem como o roubo da identidade. A própria denominação, ‘Canudos’, é, em si, uma violência contra a população que, na verdade, se auto nominava ‘Belo Monte’. Deslegitimar e fazer esquecer são as formas mais ferozes de atrocidar movimentos.
“A partir dos jornais da época, fizeram de Canudos um reduto de rebeldes, pessoas que não tinham religião, não tinham leis, tabaréus, que estavam causando mal ao desenvolvimento do país. Ou seja, era preciso exterminar” afirma João Batista, historiador com ênfase em turismo. Além disso, outra artimanha de inverter os papéis - de vítimas a vilões - é taxa-los de violentos quando se defendem. Quanto a isso, afirma Guerra: “Não existe violência do escravo para o escravizador. Porque a violência que está instruída é a da repressão contínua. Então, o que você tem são movimentos de resistência a essa violência institucional. Não há violência do mais fraco contra o mais forte”.
“Quando se escolhe Moreira César, a ideia é causar esse impacto na população brasileira, ‘Canudos agora será dizimada, agora temos um comandante a altura dos jagunços, assassinos e bárbaros’” (João Batista).
Moreira César, mais conhecido como ‘Corta Cabeças’, foi o escolhido pelo então presidente, Prudente de Morais, para comandar as tropas contra Canudos. Esse representante violento é sempre uma ótima estratégia propagandista em prol da segurança patriota. Um líder destruidor, que degola vidas em prol do bem-estar do poder.
“Patriota, a favor da família e que não tolera nada que destoe o patriarcal. O Bolsonaro representa esse ‘Corta Cabeças’. As cabeças representam a falta de investimento na educação, a liberação de mais agrotóxico, o nenhum centímetro a mais para os indígenas, tantas mulheres que são violentadas - por esse discurso machista que ele prega -, da comunidade LGBT e do povo negro que são perseguidos e assassinados pelo discurso homofóbico e racista e mais de 600 mil mortes pela negligencia da pregação da não vacinação. Até hoje ele não se vacinou”, conclui Batista.
A cabeça de Antônio Conselheiro foi levada para o Exame Médico Legal, afim de que a ciência pudesse encontrar uma explicação para o que eles consideravam aberrações mentais. À época, se faziam grandes pesquisas com o intuito de descobrir as características físicas de um ‘delinquente’ anti-Estado. Essa antropologia criminal é aceita até hoje em discursos que tentam estereotipar criminosos por sua cor e etnia. O que representa uma forma de legalizar o genocídio de grupos de pessoas por suas características físicas.
A chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Os dados fazem parte do Atlas da Violência de 2021 – divulgado em agosto desse ano. O ato genocida, continua acontecendo, com inúmeros discursos traiçoeiros para justificar que seu alvo tem etnia, cor, religião e classe social específicas.
Segundo Batista, “uma pauta sobre o que foi esse movimento [Canudos], é necessária para que as pessoas compreendam o que foi o Brasil de ontem, e o em que estamos inseridos hoje. [...] fazer com que as pessoas entendam que os erros do passado continuam sendo repetidos hoje, por conta dessas lideranças que são constituídas, e que são, infelizmente, colocadas pelo povo – de alguma forma”.
“A gente precisa superar os ‘os donos da história’”
Euclides da Cunha, em seu livro ‘Os Sertões’ (1902), faz um panorama respeitado sobre o que foi a Guerra de Canudos. Sendo correspondente do jornal – O Estado de S. Paulo -, e tendo participado de uma parte da guerra, o então escritor constrói uma crítica humana ao acontecimento.
Esse livro, tendo uma repercussão avassaladora – inclusive internacionalmente - foi o que deu a Euclides sua cadeira na Academia de Letras. Entretanto, segundo Guerra, “ninguém pode negar o mérito de Euclides da Cunha, mas além dele você tem 25 mil moradores de Belo Monte e 15 mil soldados envolvidos”. Cabe dizer, que esse livro parte de certa meia culpa pelo ocorrido. Euclides da Cunha foi membro do exército e integrante da imprensa – dois dos principais grupos responsáveis pelo massacre.
A história precisa ser ouvida pelos vencidos, e por seus descendentes. Garantindo, assim, o lugar de fala, livre de projeções estereotipadas, dotadas de privilégios, hipocrisias e segundas intenções. “Os vencidos também merecem um lugar na história. A história de Belo Monte foi contada sob a ótica dos vencedores”, diz Batista.
Preservar e divulgar a verdadeira história de Canudos, tendo como referência as narrativas dos descendentes conselheiristas é o principal objetivo do Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC). Atualmente, o grupo é uma das principais formas de estreitar a relação do que foi Belo Monte com os movimentos socias de hoje.
Vanderlei Leite da Silva, morador da cidade de Canudos e coordenador do IPMC explica que “essa experiência da união e da organização dos grupos, é a estratégia que a gente tem para colocar em risco os privilégios dos grandes. Têm muitos poderosos que fazem de tudo para que isso não aconteça”.
A romarias, são eventos abertos que acontecem anualmente – geralmente no mês de outubro -, desde 1988. É um evento aberto para a população de Canudos e pessoas de outras regiões que se interessem pelo assunto. Cada romaria possui um tema para debate, que é selecionado pela paróquia do IPMC e uma comissão dos movimentos atuais.
“Fazemos uma relação do que estamos vivendo hoje, a atual conjuntura e a relação do que representou o movimento de Canudos. O tema deste ano foi: ‘O grito de Belo Monte em defesa da vida’. É o nosso grito hoje, né? De defender a vida, de nos proteger, contra esses retrocessos que vêm acontecendo com esse desgoverno bolsonarista”, reforça Silva. O IPMC pode ser encontrado através do instagram - @ipmcanudos - e no canal no Youtube - Instituto Popular Memorial de Canudos.