O entretenimento moderno como catalisador de debates religiosos

A indústria do entretenimento realmente reforça estereótipos e preconceito sobre o paganismo ou usa de elementos reais para criar uma ficção que incomoda?
por
Rafaela Correa de Freitas, Maria Luiza de Oliveria, Giulia Palumbo
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16/06/2021 - 12h

No Brasil, não há dados separados para pessoas que se consideram pagãs, ficando na categoria “Outros” da pesquisa do Datafolha publicada em Janeiro de 2020, representando apenas 2% da população brasileira. Religiões espíritas e afro-brasileiras também ocupam a margem de 2% cada. Os números expressam não só poucas pessoas inseridas nessas religiões, mas a falta de procura por conhecimento de cada uma delas. Essa ignorância é facilmente transformada em opressão quando colocada nas mãos de grupos majoritários e que possuem grande influência nos meios de comunicação.
 

Entre as manifestações físicas dessa desinformação, vê-se de maneira clara na indústria do entretenimento a falta de conhecimento sobre essas religiões que geram estereótipos e, em outros casos, alimentam diversos tipos de intolerância se colocados em determinados contextos.
 

O filme “Invocação do Mal", distribuído pela Warner Bros. Pictures, é conhecido por criar ficções em cima de práticas como o satanismo e inserir símbolos, como a tábua Ouija, relacionada ao universo do Espiritismo, como coisas relacionadas ao que cristãos enxergam como o diabo. O casal, que existiu de verdade, era composto de dois agentes da igreja católica que estavam em contato direto com o Vaticano na época.

O casal do cinema, ed e lorraine warren estão juntos com uma expressão preocupada. Lorraine, na frente e Ed um pouco desfocada ao fundo
Imagem: Reprodução

 

Outro exemplo que ficou muito conhecido foi a série “O Mundo Sombrio de Sabrina” distribuída pela Netflix, que entrou em conflito com um templo satânico após usar a estátua da criatura simbólica “Baphomet” para representar o diabo cristão. O templo The Satanic Temple acusou a série de “fazer uma representação estereotipada do mal”
 

"Foram anos de cuidadosas decisões de design, investimento financeiro pessoal quando o financiamento coletivo não deu certo, e muitos anos elaborando o significado desse monumento. Tudo para aqueles que nos silenciam usarem a imagem com a intenção de dar uma boa risada", afirmam as lideranças do Templo através de um comunicado oficial.

 

Cedrec Nightingale, de 29 anos, sacerdote wiccaniano e produtor de conteúdo, tem uma visão ampla do assunto. “Eu acho que na bruxaria, a gente não pode ser 8 ou 80, a gente tem que seguir o caminho do meio, sabe? Então, todas as coisas precisam de equilíbrio. Eu cheguei na bruxaria graças ao Castelo Rá-Tim-Bum, onde eu tinha um garoto que tinha 360 mil anos, uma bruxa de cabelo em pé, então eu gostei e me apaixonei pela bruxaria por coisas como essa, extremamente fictícias! Eu amo Harry Potter que solta raio pela varinha. A bruxaria tem um chamado, e eu não falo um chamado porque alguém é especial, mas eu falo um ‘clique’ de que tem alguma coisa que é diferente, e você pode buscar isso! Eu acho que as artes despertam isso, a arte é como eu me comunico.”

 

Cedrec aparce usando um chapéu, com um atame na mão direita, na parte de trás, enquanto a esquerda aponta para a câmera de forma mística
Imagem: Acervo pessoal Cedrec Nightingale

Já o produtor e jornalista Alexandre Petillo, como profissional da comunicação, defende a liberdade criativa nas obras que citam crenças e rituais:  “Eu acho que na ficção, a imaginação pode ir longe, você pode usar esses elementos para criar uma história ficcional e obviamente você vai esbarrar em coisas onde você vai aumentar ou reforçar um estereótipo, eu acredito que é difícil dar um limite à ficção. O importante é você ter o bom senso de entender se aquilo ofende ou vai prejudicar alguém de certa forma.”
 

“Para criar essa ficção da maneira que você quiser, você precisa antes de tudo, entender do que você está falando”

 

Alexandre está em um ambiente bem iluminado entre duas taças de vinho tinto quase vazias, ambos os ante braços apoiados na mesa enquanto ele sorri para a câmera.
Imagem: Acervo pessoal Alexandre Petillo

 

A grande maioria dos filmes e séries modernas que retratam o paganismo, religiões de matrizes africanas ou espíritas, não têm o intuito de informar ou criticar. A técnica muito utilizada em produções de terror, “jump scare”, onde há uma mudança repentina de cena com o intuito de assustar quem assiste, se popularizou muito. Junto com o drama, essa técnica tomou conta das telas dessas produções que se tornaram propositalmente uma experiência plenamente assustadora, muitas vezes sem explorar o lado mais psicológico do terror. Os elementos dessas religiões se tornaram parte dessa realidade tenebrosa e a discussão sobre se isso influencia a intolerância em cima dessas práticas é extensa.

Cedrec conta que, para ele, isso é algo que depende da abordagem utilizada. “O limite é quando você ofende uma prática. Eu não me sinto ofendido quando alguma pessoa coloca uma bruxa junto com o diabo, eu não me sinto ofendido, mas se houver, por exemplo, documentários ou alguma coisa assim, dentro da cultura literária ou audiovisual que incentiva a opressão, a agressão, que incentive práticas desse tipo, aí sim…”

 

“Se pra você, meu Deus é o diabo, que assim seja”

 

Ele ainda comenta que o conhecimento e presença de especialistas nas produções é essencial para “dar menos margem para dores”: "Talvez, a solução para isso seja, nas grandes produções, a gente dar oportunidade para as bruxas falarem. E principalmente dar espaço para as bruxas na internet, na televisão, nos jornais, para além de tarot e leitura de signos. Vamos falar, vamos explicar aquilo que as pessoas não querem ouvir ou que a gente não teve oportunidade de explicar”
 

Alexandre concorda, “Se você for se debruçar sobre uma religião, principalmente uma religião que você não conhece, na qual você não está inserido, o maior erro é você filmar ou escrever isso, sem conhecer. Eu acho que quando a gente lida com religião, a gente tem que sempre lembrar que tem muita gente que acredita naquilo, tem muita gente que dedica a sua vida àquilo e todas as pessoas  merecem respeito, aquela crença merece ser retratada com respeito[…] Se você tem críticas a ela [religião], você pode criticá-la, você pode buscar pessoas que são contrárias à sua opinião e promover o debate”
 

As religiões cristãs não escapam das sátiras, ainda que em menor proporção. A produção natalina do grupo de humor Porta dos Fundos, “A Primeira Tentação de Cristo”, foi tema de debates no Supremo Tribunal Federal e depois de um abaixo-assinado com mais de 1,6 milhão de assinaturas que pediam a retirada do catálogo da Netflix. O pedido não foi atendido. A sede da produtora foi atacada com dois artefatos incendiários.

 

"Jesus é retratado como um homossexual pueril, Maria como uma adúltera desbocada e José como um idiota traído", disse a Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, responsável pelo processo.

 

Alexandre comentou o caso,

“A gente tem vivido um momento meio um pé cá e um pé lá entre a liberdade que a gente conquistou pra um momento onde precisaremos pensar na nossa família acima de tudo”

The Satanic Temple tentou processar a Netflix pelo uso indevido de sua estátua, mas não recebeu resposta.


Foto de capa: O Mundo Sombrio de Sabrina, Netflix

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