O declínio da arte oriental do charão no Brasil

por
Karinny Galvão Leite
|
20/11/2019 - 12h

O Brasil é repleto de misturas culturais, nas quais boa parte é proveniente da imigração. Uma delas é a arte oriental conhecida como charão, que corresponde à extração da laca para revestir objetos. Poucos sabem que, nos anos 30, houve um forte esforço para que essa técnica se tornasse no país tão conhecida como um dos nossos tesouros, o futebol.

O método chegou pelas mãos do japonês Ryoichi Nakayama, um economista que, cansado das atividades monótonas que a profissão lhe causava, resolveu, diante das dificuldades enfrentadas pelo Japão após a primeira guerra e da crise de 1929, vir com sua família para tentar a sorte de uma vida melhor.

“Quando meu avô veio ao Brasil ele achava que aqui era tudo mato. Então, ele trouxe coisas suficientes [para a sobrevivência] até que os filhos, que eram pequenos na época, completassem 16 anos. Então imagina, por exemplo, ele trouxe uma quantidade de fósforos imensa”, conta Sergio Nakayama, neto de Ryoichi.

Ao pisar em solo brasileiro, Ryoichi Nakayama se deparou com uma realidade muito diferente. Ele não imaginava que aqui não se faziam peças do charão. As que existiam, eram frutos de importação. Assim, voltou ao Japão, aprendeu técnicas com artesãos locais, recolheu ferramentas e retornou ao Brasil trazendo sementes para plantar as árvores e o sonho de prosperar.

Mas, a espécie que ele trouxe não se aclimatou no Brasil. Dessa forma, ele buscou ajuda do então Serviço Florestal, que conseguiu sementes da Indochina Francesa, convencendo Nakayama de que essa técnica artística poderia passar de um interesse próprio para um indústrial, no qual São Paulo seria o palco para o desenvolvimento.

Natália Ferreira de Almeida, que é a responsável pelo Museu Florestal Octávio Vecchi, em São Paulo,  que possui acervos de charão explica: “na verdade, a técnica  pode ser aplicada em diversas superfícies, então tem aplicações em ferro, aço, papelão, madeira”.

Entretanto, para se fazer o charão é preciso muita paciência e tempo.

Basicamente é necessário plantar as sementes, esperar alguns anos para que a árvore atinja o período certo para a extração da laca (que é uma espécie de resina incrustada), passar diversas camadas dessa laca no objeto e, por fim, finalizar com um acabamento, que costuma ser sempre com um desenho artístico.

Exemplo de peças em charão. Foto: Japanese Lacquer “Urushi” (Japanese Culture Book).
   Exemplo de peças em charão.

Foto: Japanese Lacquer “Urushi” 
      ​​​​(Japanese Culture Book).

O charão costuma ser mais visto em utensílios de cozinha “hoje a culinária japonesa está mais que popularizada aqui no Brasil, então, se você vai em um restaurante japonês tem aqueles utensílios pretos, que remetem a estética do charão”, diz Natália Ferreira.

Mas o charão também reveste caixas de músicas, biombos, leques, dentre muitos outros objetos, além de estar presente na moda, como em cintos.

Porém, com a demora em fabricar as peças e com o surgimento de alternativas mais baratas, como é o caso do óleo da semente de caju, contribuíram para que essa arte fosse perdendo o espaço no Brasil e caísse no esquecimento.

A professora de História da Arte da Ásia da UNIFESP, Michiko Okano, conta os motivos pelos quais o charão foi esquecido: “o artesanato no Brasil é muito desvalorizado. As pessoas não conseguem se sustentar da arte. No Japão, as obras que são artesanais, são muito valorizadas. Lá temos artesãos que são considerados patrimônios culturais”, argumenta.

O artista francês Francis Jean Marie, que mora no Brasil há muitos anos, foi até a terra do sol nascente na década de 80 e teve aulas em uma universidade tradicional para aprender a fazer charão.

Ele tentou fazer suas obras aqui no Brasil, mas enfrentou dificuldades burocráticas e econômicas, o que fez com que atualmente desenvolvesse outro tipo de arte: “madeiras torneadas são um pouco mais fácil, tem um custo bem inferior e as pessoas tem um pouco mais de afinidade. O charão precisa fazer um curso, ter uma educação para ver como o trabalho é importante”, destaca.

Sérgio Nakayama também contou que ninguém mais da família faz o charão: “eu tenho a missão de fazer o resgate dessa história para passar para os meus filhos, para que eles saibam como o avô foi pioneiro”.

 Apesar das dificuldades, Michiko Okano revela uma vantagem de fazer esse tipo de arte no Brasil: “Aqui, não existe um consenso [tradicionalismo], então as pessoas se sentem com liberdade de fazer novas criações”.

Por mais que as esperanças pareçam acabar, no Instituto Florestal de São Paulo foram encontrados resquícios e novas mudas da espécie que produz a laca, que nasceram em função da própria natureza. Assim, o charão ainda revive. Para que ele esteja presente, basta desejarmos e termos o interesse de que ele renasça.

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