A forma de consumir entretenimento vem mudando há alguns anos. Filmes e séries passaram a ser acessíveis a qualquer hora e em qualquer lugar, com alta qualidade desde a ascensão dos serviços de streaming. Consequentemente, a televisão passa por profundas mudanças, uma vez que seu público tem migrado para os serviços personalizados da internet.
A pandemia do novo coronavírus acelerou esse processo de mudança. Programas de TV precisaram se adaptar, usuários de streaming aumentaram exponencialmente e o jornalismo intensificou-se como efeitos colaterais da crise mundial de saúde.
Dados da Anatel mostram menos 90 mil assinaturas de televisão paga no Brasil em março deste ano. Em contrapartida, a Netflix, plataforma de streaming mais popular e conhecida no Brasil, acrescentou 1 milhão de assinantes até o final de março, primeiro mês da quarentena, aos seus 15 milhões já existentes no país Os dados são do site "Na Telinha". 15 milhões também é o número, em média, de novas assinaturas da empresa no mundo. Seu faturamento no primeiro trimestre do ano foi de 5,8 bilhões de dólares, aumento de 28% comparado ao mesmo período de 2019. No mundo, agora são 183 milhões de contratantes do serviço.
O isolamento também alavancou plataformas mais recentes, como a Amazon Prime Video e a Disney+. A última, lançada nos Estados Unidos em novembro, alcançou 50 milhões de pagantes em 8 de abril. Analistas previam que a plataforma, antes da pandemia, só chegaria a esse número em meados de 2022. No Reino Unido, a estreia se deu em 24 de março, um dia depois do primeiro ministro britânico anunciar o início da quarentena no país, e no primeiro mês atraiu 1,6 milhões de pessoas. 85% dos assinantes disseram que pretendem manter o serviço após a crise.
Para analistas, as assinaturas de streaming seriam um dos primeiros cortes no orçamento familiar. Porém, o entretenimento tem sido o escape de muitos para o mundo exterior em um momento em que isso é impossível fisicamente.
Mas por quais razões Netflix é mais popular que o streaming da Disney e da Amazon? A primeira razão é o tempo de mercado. Netflix é mais antiga do que ambos, dando tempo para que as pessoas possam testá-lo e recomendar a amigos, por exemplo. Outra razão é o conteúdo original. Com estúdios criando seus próprios streamings e retirando de concorrentes seus títulos, apostar em produções originais é a saída. De acordo com a Bloomberg Intelligence, o orçamento da Netflix para conteúdo próprio em 2020 é de 16 bilhões de dólares, contra os 7 bilhões de dólares da Amazon planejados para este ano. A Disney+ tem entre US$1,5 e US$1,75 para gastar. O terceiro motivo pode ser o baixo índice de problemas técnicos da Netflix em comparação aos seus concorrentes. A J.D Power fez uma pesquisa entre os dias 24 e 26 de abril nos EUA e a Netflix pontuou somente 0,7% enquanto a Amazon teve 0,11% e a Disney, 0,12%.
A televisão brasileira, porém, não deu essa guerra como ganha para o outro lado.
Domingo às quatro horas da tarde é o principal horário do futebol na televisão brasileira. Depois do almoço com a família, se não houvesse discussão por causa de política, era bem provável que houvesse por futebol. Porém, a quarenta obrigou tanto as reuniões familiares quanto o futebol a serem cancelados. A paixão nacional pela bola redonda faz sua falta ser bastante sentida, tanto quanto a da família. Assim, reprises de jogos marcantes foi uma das soluções de canais abertos e fechados.
A Globo no dia 12 de abril, domingo de Páscoa, transmitiu o jogo da conquista do penta da seleção brasileira. A vitória contra os alemães em 2002 no Japão de 2x0, ambos os pontos de Ronaldo Fenômeno. A reprise foi um sucesso. Segundo o UOL Esporte a reexibição teve média de 21 pontos de Ibope, mais do que alguns jogos do campeonato paulista este ano. O canal tinha como meta marcar pelo menos 18 pontos.
Durante a transmissão, as redes sociais se transformaram em túneis do tempo. A reprise do penta foi o assunto mais falado na internet brasileira e colocou diversos temas nos Trending Topics do Twitter, como Ronaldo, Kleberson, Alemanha e a tag #copa2002. Com diversos memes e lembranças dos internautas do que estavam fazendo há 18 anos, o jejum do futebol foi quebrado pela seleção que “trazia alegria pro povo”.
O jogo do memorável grito de “É tetra!” de Galvão Bueno também foi reprisado. A final da Copa de 1994 Brasil x Itália, foi decidida nos pênaltis, e por se tratar de um jogo longo, houve muita diferença entre os picos de audiência. Muitos torcedores criticaram a final, por sua qualidade técnica e afirmaram pelas redes sociais que somente assistiram às penalidades. Na hora do pênalti errado por Roberto Baggio, que concedeu o título ao Brasil, a Globo chegou a picos de 21 pontos de audiência na Grande São Paulo.
Em jogos de times específicos, que não envolvem a seleção e sim times estaduais, houve queda de audiência, o que era previsto, pois muitos torcedores não gostam de ver os rivais conquistando títulos importantes.
No domingo de 17 maio, as regiões do Rio de Janeiro e de São Paulo tiveram jogos diferentes — o que normalmente já acontece. Na região paulista, o jogo transmitido foi a final de 2012 do Mundial de Clubes da FIFA entre Corinthians (1) e Chelsea (0). Já os cariocas ficaram com a última final da Copa da Libertadores: Flamengo (2) x River Plate (1). As quedas de audiência foram de 21% e de 33%, respectivamente.
Segundo o site da UOL, antes do isolamento a média de pontos do futebol aos domingos era de 19 em São Paulo e 17 no Rio.
A principal concorrente do futebol aos domingos é a Eliana. Como as gravações dos programas de auditório estão paradas, reprises estão sendo utilizadas também. No SBT, "Roda Roda", "Programa Silvio Santos" e "Domingo Legal", por exemplo, estão sendo veiculados no mesmo esquema. A Globo também o adota no "Altas Horas", "Domingão do Faustão" e similares.
A reapresentação de novelas já é algo comum nas emissoras. Com a interrupção das gravações, novela antigas substituíram atuais. Às 21h, ao invés de "Amor de Mãe", "Fina Estampa" vai ao ar, novela gravada entre 2011 e 2012. Mesmo a história já sendo conhecida pelo público, sua audiência chegou aos 34,1 pontos de Ibope na Grande São Paulo, mais do que os 29,7 da antecessora.
Enquanto o entretenimento sofre encurtamentos e mudanças consideráveis, os jornais televisivos experimentam o inverso. Suas alterações destacam-nos nas grades da televisão aberta. Houve poucos momentos na história em que os jornais passaram tanto tempo veiculando o mesmo assunto. Há mais de três meses a TV Globo anunciou a mudança no horário de sua programação. Desde início de março, quando a COVID-19 começou de fato a alarmar a população, o jornalismo está passando das 4 horas da manhã até às 15 horas, somando 11 horas seguidas de telejornal sobre a pandemia no Brasil e no mundo. Mantém-se ainda outros jornais, como o Jornal Nacional ao longo do dia.
Essa mudança drástica, segundo a própria emissora, é “a necessidade de dar o máximo de informação para a população numa situação extrema: a luta para conter a epidemia do novo coronavírus no Brasil”. Não apenas a Globo, como Band, Record e outras têm investido em conteúdo jornalístico em excesso durante o dia, a noite e até madrugada.
Prejudicial à saúde mental
Apesar das boas intenções, a super exposição às notícias da pandemia pode ser prejudicial à saúde mental. O jornal digital R7 publicou uma reportagem abordando os problemas que podem ser desenvolvidos ao assistir por muito tempo informações negativas. Segundo a matéria, quando alguém está vulnerável à uma avalanche de notícias ela é “coagida” a lidar com esses pensamentos. Uma vez vista e ouvida, automaticamente o ser humano processa a informação e quando ruim, ela ativa o sistema límbico do cérebro responsável pelas emoções.
Quem explica isso para o R7 é o neurocirurgião Júlio Pereira da Beneficência Portuguesa de São Paulo. Ao ler uma notícia ruim, o homem libera uma substância chamada cortisol, hormônio ligado ao estresse. Ao liberarmos cortisol, nosso corpo entende que estamos em perigo e desencadeia uma série de sintomas como arritmia cardíaca, frio na barriga e falta de ar.
O maior problema, segundo o médico, é que com o excesso de informações negativas sobre a coronavírus pode levar à uma espécie de estresse crônico, quando os sintomas da liberação de cortisol se prolongam. O efeito é tão profundo que ele relata já receber pacientes em estresse crônico pensando estar com coronavírus.
Além disso, com os efeitos do hormônio prolongados e a enxurrada de informações negativas dos noticiários, doenças como depressão e ansiedade podem desenvolver-se. "O cérebro fica sempre em alerta, procurando uma saída e não consegue descansar. Isso pode causar outros problemas de saúde" afirma Pereira ao R7.
O padre Fábio de Melo em seu Twitter desabafou dizendo que “precisamos zelar pela saúde mental também”. Ele completa depois fazendo uma crítica sobre o excesso de informações da mídia: “não sei vocês, mas ficar acompanhando as notícias está me deixando muito mal. Há um limiar estreito entre a necessidade de saber e o excesso de saber”.
Marcos Cripa, professor de telejornalismo da PUC-SP também comenta sobre o assunto. Para ele, um formato de noticiário interessante e que pode ser adotado para suavizar a negatividade é atualizar matérias especiais antigas. Ele dá como exemplo o caso do Major Curió, recebido no Planalto por Jair Bolsonaro para uma conversa no dia 5 de maio. Curió foi acusado por homicídio e tortura durante a repressão à Guerrilha do Araguaia; também foi gerente da Serra Pelada durante a década de 1980, obrigando pessoas a trabalharem na localidade, segundo provas. Como as polêmicas do Major foram reavivadas, Cripa enxerga o momento como uma boa deixa para retomar Serra Pelada nos noticiários, atualizando-a com as novas informações que vieram à luz depois de 40 anos.
A BBC em 20 de março publicou uma lista de recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para manter uma boa saúde mental durante este período de confinamento e incertezas. O primeiro item da lista é recomendado medir a quantidade de informações que você recebe. “Uma sugestão é separar horários específicos do seu dia para fazer isso”.
Outra questão abordada é sobre as fake news. A OMS relembra que é sempre importante procurar informações de qualidade e fontes confiáveis, uma vez que uma notícia falsa pode causar alarde e desespero sem necessidade e prolongar ainda mais os efeitos do estresse crônico.
Vale lembrar que desde final de abril, a Globo tem retornado com parte de sua programação de entretenimento. Como o "O encontro com a Fátima Bernardes" com participação especial da Ana Maria Braga, que começa às 10:45 da manhã. Segundo a Globo, eles irão adaptar sua rotina de programações para "trazer mais diversão as manhãs de seu público, sem abrir mão da prestação de serviço do jornalismo."