“Durante um ano, frequentei a escola como noiva e ele professor. Por três anos, falava: 'professor Mathias, o senhor...'”. O romance, felizmente, ocorreu no final dos anos 1940, quando Maria Julia Carvalho de Abreu Lima era mais nova 19 anos que Mathias de Abreu Lima, a partir de uma pergunta na saída da escola. Tiveram seis filhos, 16 netos, incluindo eu, e alguns bisnetos.
No ano de 1949, Maria Julia, estudante ginasial do colégio Fernão Dias, época com 15 anos de idade, foi pega de surpresa após uma pergunta feita por um de seus professores, Mathias, então com 34 anos. “Fui atendê-lo sem ter a menor ideia do que se tratava”. Como não era um assunto relacionado à escola, ela ficou atordoada até a demanda feita no portão da escola: a possibilidade desse professor, já conhecido por sua família, ir até sua casa falar com seus pais. Depois de marcar data e hora dessa “entrevista”, foi num sábado que Mathias esteve em sua casa, na avenida Celso Garcia, Brás, Zona Leste de São Paulo.
Assim que Mathias falou com meu bisavô, José Cesar de Carvalho, ficou público que ele havia pedido sua permissão para darem uma volta pelo bairro. Com o aval de seu pai, uma semana depois saíram pelas ruas do Brás. “Fomos a pé descendo a Celso Garcia até a porteira do Brás”. Ao contar o percurso que fizeram, vovó comenta na conversa que tivemos por telefone, por conta das medidas de distanciamento da pandemia.: “E isso observando religiosamente o espaço de distanciamento social, com um metro de distância.” Em 70 anos, distanciamento social voltou com outro sentido...
Com um mês de namoro, Mathias propôs em casamento Maria Julia, comprando um par de aliança com os respectivos nomes dentro dela. “Quando minha classe soube disso, todo mundo queria ler o nome dele dentro da aliança”, conta rindo. Quando perguntei como era ter aula com o professor que ao mesmo tempo era seu noivo, ela lembrou de um fato um tanto engraçado: “A única coisa é que ele pegava o diário de classes, e dizia assim: venha à lousa o número 22. Quem é o 22? Quem é? Ah Maria Júlia, muito bem”. Completa dizendo que “ele estava morto de saber que era eu”.
De aliança e data marcada para o casamento, a única coisa que faltava para a cerimônia acontecer era minha avó se formar no ginásio, uma exigência de seu pai para que pudesse se casar.
No dia 27 de dezembro de 1950, algumas semanas depois de sua formatura, se casam na Igreja de Santa Cecília. Dona Júlia, como a chamamos carinhosamente, recorda de uma lembrança nas palavras dela “interessante”, das viagens já como esposa de meu avô: “Toda vez que viajamos para nos hospedar em algum hotel, ele precisava mostrar a certidão de casamento”. Isso porque era menor de idade ainda.
Ao longo de 23 anos, tiveram seis filhos. Em 1952, Mathias. No ano de 1955, nasce Fábio. Depois de 2 anos, nasce Marcos, em 1957. No ano de 1960, tiveram Paulo, que por acaso é meu pai. 5 anos depois, nasce a única filha do casal, Maria Luiza, em 1970. E por último, o caçula Caio, em 1975. No ano de 1965, Maria Júlia passou por um aborto espontâneo.
Depois de 24 anos morando em São Paulo, já com 5 filhos, decidiram se mudar para Ribeirão Pires, em 1974. A ideia de morar em Ribeirão Pires veio depois de terem comprado um terreno vazio alguns anos antes, onde construíram uma casinha ao fundo e passavam os finais de semana na “chacrinha”, como era chamado por eles. Aos poucos, depois de venderem a casa de São Paulo, começaram a construir uma em Ribeirão Pires, que por sinal, minha avó mora até hoje.
Em 1985, ela decidiu que gostaria de trabalhar para ajudar nos custos da casa, mas como só tinha cursado o ginásio, precisava fazer alguma faculdade para conseguir um emprego com uma renda mais substancial. No mesmo ano cursou um supletivo, com duração de 1 ano e meio. Logo após terminar o supletivo, prestou o vestibular, e em 1986, 35 anos depois de largar a escola, ingressou na faculdade de letras.
Após o término do curso, ela prestou um concurso e foi aprovada para lecionar na Escola Estadual Ruth Neves Sant Anna, em Ribeirão Pires. Em um primeiro momento, dava aulas de inglês e português, mas em seguida só português, nos cursos de supletivo e ensino médio. Dona Júlia já estava nos altos dos seus 55 anos quando começou a ser professora.
Lecionou durante 15 anos, até que se aposentou compulsoriamente no ano de 2004, aos 70 anos, um ano depois de Mathias falecer, em 2003, aos 87 anos. Ao lembrar dos tempos em que lecionava, conta das caronas que seu filho caçula, Caio, dava a ela na volta para casa, na garupa de sua moto. “Era um teatro eu voltar para casa de moto quando os alunos estavam na porta. Aquilo era uma festa”.
O que guardo dessa conversa, é a possibilidade de fazer algo na vida já com uma idade avançada, além dos detalhes dessa história um tanto quanto inusitada. Aos 86 anos de idade, Maria Júlia segue ativa no WhatsApp, cuida da casa sozinha, é mãe de 6 filhos, avó de 16 netos, bisavó de 6 bisnetos. Não fosse ela, esse que voz escreve não estaria aqui.