O Agro não é pop para quem não tem o que comer

Enquanto agronegócio registra superávit nos primeiros meses de 2022, mais de 33 milhões de brasileiros lutam diariamente contra a fome e a insegurança alimentar
por
Guilherme Silvério Tirelli
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30/09/2022 - 12h

Por Guilherme Tirelli

 

Naquele tempo em que Garrincha e Pelé formavam uma dupla dinâmica e faziam chover dentro dos gramados, o Brasil era considerado por muitos o País do Futebol. Por algum momento foi também o "do emprego", "das milhares de riquezas naturais", "dono de uma fauna e flora de causar inveja a qualquer um", "do futuro". Esses eram os "alimentos" de um imaginário coletivo nacional. No entanto, hoje a realidade é outra. De uns anos para cá, o Brasil se tornou o País da "exportação descomunal", "das commodities", "do agronegócio forte", mas que produz em prol de uma minoria. O Brasil das elites não é para todos e essa é uma das facetas mais cruéis desse famigerado tipo de “desenvolvimento econômico”. Enquanto a produção de alimentos cresce, por exemplo, milhões não têm o que comer.

Esse crescimento, porém, ainda cultiva outros inimigos. Uma das maiores consequências desse processo diz respeito à questão ambiental. De acordo com pesquisa realizada pela World Wild Fund for Live (WWF), somente entre 1970 e 2010, aproximadamente 52% da fauna do planeta foi destruída. Os números, entretanto, parecem não preocupar os governantes. As ameaças ao Meio Ambiente à longo prazo, mesmo que comprovadas cientificamente, não ocupam a consciência das corporações, muito menos à do Estado, esse também um dos principais responsáveis pelo aumento da desigualdade social no Brasil.

Apenas aqui, mais de 33 milhões estão famintos, o equivalente a quase 15% da população brasileira. Sob o ponto de vista mundial é impossível justificar cerca de 820 milhões de pessoas que lutam diariamente contra a fome. O levantamento lançado pela ONU não apenas choca, mas também alerta para um problema gravíssimo. Não há qualquer projeto governamental ou até mesmo dogmas econômicos capazes de defender números como esse. Há algum tempo vivemos enclausurados a uma perspectiva de crescimento que, na realidade, só reproduz a exclusão. Mais do que isso, enquanto o povo é vítima de um sistema cujo foco é exclusivamente o lucro, a mídia em geral volta seus holofotes para temas como a alta do dólar, as crises na economia, o fechamento das bolsas ou qualquer outro fato de menor relevância para quem não consegue realizar, ao menos, uma refeição diária.

Dinheiro x Fome
Dinheiro + Fome: a equação do capitalismo - Getty Images

O próprio PIB é um exemplo. Tão debatido nos jornais televisivos, em tese sua principal meta é acompanhar a atividade econômica brasileira em função do tempo. Por um lado, ele consegue indicar o crescimento do agronegócio no Brasil, uma vez que, apenas entre os meses de janeiro e abril de 2022, o País registrou um superávit de US$ 43,7 bilhões nessa área. Contudo, do outro lado da moeda, não se é capaz de medir o tamanho do desastre ambiental. A monocultura, em conjunto com o aumento do uso de pesticidas danificam o solo e representam um sério risco à população. Por fim, outro fator que também passa despercebido é o drama social, fruto de uma injusta distribuição de terras, e de políticas públicas pouco efetivas.

Segundo o Prof. Dr. Bruno Vidal de Almeida, da UNIFEI – Universidade Federal de Itajubá, o uso da agricultura a partir de um viés econômico de investimento e lucro, bem como a grande concentração de terras nas mãos de poucos estão fortemente relacionadas com a questão da fome no Brasil. Mesmo o agronegócio não sendo o único vilão, tanto a logística quanto a cadeia de exportação elevam gradualmente os preços dos alimentos, ao invés de garantir a segurança alimentar para toda população. Dessa maneira, falta comida nas mesas dos brasileiros ao mesmo tempo que as taxas de exportação batem recorde.

Exporta-se a matéria-prima para países como Estados Unidos e China e, posteriormente, compra-se o produto final. Não existe qualquer lógica quanto a essa política, ao passo que o Brasil prioriza o capital externo proveniente das multinacionais em vez de produzir em território nacional. Desse modo, há menos geração de empregos e, consequentemente, a roda da economia não gira como deveria. O atual sistema faz com que empresários do mundo todo priorizem investimentos em lugares onde as leis ambientais são mais flexíveis e a mão de obra é barata. No fim da história, quem manda sempre é o dinheiro enquanto as pessoas e as relações sociais acabam por cair no esquecimento.

Capital externo é a prioridade do momento
Capital externo é prioridade na economia brasileira - Getty Images

 

Necropolítica

 

Essa é a mesma lógica por trás da Necropolítica. Aqueles que detém o capital são os mesmos que determinam quem têm ou não o direito de viver. A questão, porém, é que determinadas coisas não podem faltar para ninguém. A economia jamais se encontrará estável imersa em um cenário no qual 1% da humanidade controla 99% da riqueza global. Nas mazelas da sociedade, os mais pobres não têm a menor condição de encher o carrinho de supermercado. Portanto, essa equação que prioriza o lucro, nunca será a mesma que eliminará a fome.

O Agro que é tech, não produz com foco no abastecimento interno. O Agro que é pop, enche os bolsos de uma ínfima parcela da sociedade. E o “tudo” que envolve o Agro, também corresponde à fome. Há anos o alimento é tratado como mercadoria e não como política social. A falta de esforços do Governo Federal, em conjunto com a queda do Real frente ao Dólar possibilitou que o capital estrangeiro se tornasse o principal foco do mercado. Tudo aquilo que restou segue para as prateleiras do supermercado seguindo a lei da oferta e procura. O mais engraçado é pensar que foi exatamente no Brasil que o agronegócio assumiu a responsabilidade de reduzir a fome no mundo, e é aqui que uma das maiores inflações do planeta ajudou a deixar mais de 58% da população em estado de insegurança alimentar.

A alta dos preços das commodities, em consonância com os incentivos do governo à política de exportação, tornou o agronegócio especialista na produção de poucos produtos. A principal consequência desse processo é uma constante substituição das culturas alimentares pela agricultura externa. Essa máxima, é o que resume a estratégia político-econômica de distribuição dos alimentos. É simples: quem tem mais dinheiro leva e ponto. Por esse motivo, é impossível classificar a insegurança alimentar como uma simples falha estrutural do sistema econômico. Ela é sim um problema, mas que parece ser arquitetado e planejado com o objetivo de manter as elites no controle.

Futuro

Não é por acaso que o aumento dos índices de produção do agronegócio e o crescimento da fome são duas faces da mesma moeda. A cada novo recorde da safra de soja ou café, milhões de brasileiros acordam sem nem mesmo saber o que irão comer naquele dia. Essa triste realidade, apenas assinala que o Agro nada mais é do que um negócio. Seu interesse é exclusivamente o lucro. A sua preocupação não é alimentar a população no Brasil e no mundo. Na realidade a fome nada mais é do que um autêntico reflexo da concentração de riquezas e de terra pautada na injustiça. Embora o Brasil seja uma das dez maiores economias do planeta, também é uma das dez nações mais desiguais.

Esse cenário permanecer imutável não é uma opção. Esse não é o Brasil que as próximas gerações merecem. O sistema capitalista não resolve a vida de todos, muito pelo contrário. O Meio Ambiente também clama por socorro. As crises econômicas são claros sinais de que o planeta está indo a passos largos na direção errada. Ainda de acordo com o professor Bruno Vidal, os métodos produtivos baseados na agroecologia e agroflorestais são o caminho ideal para o futuro do agronegócio. Contudo, enquanto não houver uma interferência eficiente por parte do Estado, principalmente quanto a distribuição de terras e a exportação desproporcional, essa será a realidade a qual estaremos sujeitos. Pelo menos até quando a “Terra” aguentar. Nesse sentido é preciso resgatar o imaginário que produzimos tempos atrás de que éramos o País "do futuro". Já estamos naquele futuro que imaginamos e é tempo de construir um novo futuro para o País.