“Nós já lutávamos contra tudo que vinha nas caravelas, inclusive o machismo”, diz indígena Kayapó

Representante do movimento wayrakunas, que estuda a opressão da colonização, explica a necessidade do feminismo na realidade indígena
por
Carolina Raciunas, Isabela Gama e Tiago Herani
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11/11/2021 - 12h

De acordo com o Atlas da Violência 2021, a comparação do número de homicídios contra indígenas é desigual entre homens e mulheres. Enquanto elas representam 0,8% da taxa nacional deste tipo de violência, eles compõem 0,3%. Essa diferença demonstra que o machismo está estruturado em toda a sociedade e compactua com um movimento que fere os direitos humanos. Para a representante do movimento indígena wayrakunas, Aline Kayapó, a luta contra o machismo é essencial e existe há muito tempo: “Antes dos colonizadores entenderem a nossa humanidade, nós já lutávamos contra tudo que vinha nas caravelas, inclusive o machismo”.

Foto: Eric Marky Terena/Mídia Índia
Simulação de assassinato indígena Foto: Eric Marky Terena/Mídia Índia

Outro fator preocupante para essa parcela da população é o assédio sexual. Em agosto de 2021, uma menina de 11 anos, da etnia Kaiowá, foi vítima de um estupro coletivo antes de ser jogada de um penhasco de mais de 20 metros de altura. O crime que ocorreu no Mato Grosso do Sul tem como principal suspeito o tio da criança, que confessou à polícia que assediava sexualmente a garota há anos.

A ativista Kayapó explica que a cultura do estupro está relacionada à fetichização do corpo da mulher indígena. Segundo ela, essa perspectiva existe por conta da romantização desses povos por parte da sociedade que criou diversos estereótipos opressores. Além disso, Kayapó afirma que denunciar casos de assédio é difícil, principalmente por conta da descriminação: “Às vezes não temos uma boa relação com a polícia, porque ela sempre foi omissa quanto à defesa dos nossos direitos. Por isso, muitas indígenas mulheres ainda se sentem acuadas para denunciar casos de assédio”.

Em meio a essas violências, o amparo do Estado é de extrema importância para assegurar os direitos das indígenas. No entanto, a legislação específica para combater as violações contra mulheres, a Lei Maria da Penha, não contribui de maneira plena para essa parcela específica da população, como explica a antropóloga Paola Gibram: “No Brasil ainda não existem políticas públicas específicas voltadas às mulheres indígenas. A Lei Maria da Penha não contou com a participação delas para sua elaboração, e não contempla as realidades indígenas”.

No entanto, a disparidade entre a realidade das mulheres indígenas e das brancas não se limita à violência doméstica. Desde a colonização, as demandas têm se mostrado diferentes entre os grupos étnico-raciais. O feminismo branco lutou, por exemplo, pelo direito ao trabalho, enquanto mulheres originárias lutavam pelo direito de continuar existindo.

Gibram explicita que, para o movimento feminista indígena, os valores não estão no indivíduo, e sim na comunidade, nas ações para o bom convívio social, e nas relações com o território e com a ancestralidade. “O movimento das mulheres indígenas é coletivo, luta pela vida e, assim, envolve crianças, idosos e até homens", diz a antropóloga.

Fonte: ANMIGA
Fonte: ANMIGA

Em setembro de 2021, ocorreu em Brasília a Marcha das Mulheres Indígenas, organizada pela ANMIGA – Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade – na qual a deputada Joênia Wapichana, primeira mulher indígena na câmara dos deputados, se reuniu com mulheres para debater e dar início à elaboração de um projeto de lei voltado aos direitos das mulheres indígenas. 

Um dos problemas sociais contra o qual elas lutam é a perspectiva do corpo indígena como exótico. Segundo Gibram, esse aspecto reforça o racismo: “O exotismo é o gatilho ativado para que o outro seja absorvido como objeto, como algo que, por ser visto como tão diferente do padrão branco, acaba se personificando nas diferenças. Por isso, é uma das formas mais fortes de expressão do etnocentrismo”.

A antropóloga salienta a importância de reunir essas mulheres para que haja um fortalecimento delas e das suas lutas pela transformação da realidade. Dessa forma, seria possível contribuir para uma existência digna, junto ao seu povo e território, garantindo o direito de transitar entre o mundo indígena e não indígena, se assim elas quiserem.