Rose Marie Muraro, intelectual tida como representante-mor e pioneira do feminismo no Brasil, expressou em seus trabalhos como a divisão dos sexos foi baseada em processos de dominação, na busca pelo poder e na divisão sexual do trabalho. Para ela, o gênero não é determinado pelo sexo biológico: toda essa designação de gênero se organiza de acordo com uma sociedade patriarcal. A partir dessa divisão, tarefas, vestimentas e comportamentos, entre outros, surgiram as concepções de gênero em nossa sociedade e inconsciente coletivo.
O gênero atribuído ao nascimento, comumente chamado de “sexo biológico”, diz respeito às características biológicas e sexuais que a pessoa tem ao nascer, e incluem cromossomos, genitália, composição hormonal, entre outros. Já a identidade de gênero é uma questão de autopercepção, uma vez que a autoimagem da pessoa é o fator que mais se sobressai ,já que ela se define conforme a sua percepção de si mesma. Uma pessoa pode ser cis ou transgênero; sendo trans, pode identificar-se dentro do gênero binário ou possuir uma identidade não-binária.
As noções de gênero primárias, que contavam somente com a binariedade, foram essenciais para a exclusão e desigualdade não só apenas de indivíduos cisgênero (aqueles que se identificam, em todos os aspectos, com o gênero atribuído), como de indivíduos com opções sexuais não normativas e transgêneros, tais quais não-binários, agêneros e genderfluids. Logo, as pessoas que se consideram não-binárias, ou seja, as que não se identificam com o binarismo de gênero de homem e mulher, concebem uma nova ideia de gênero. Apesar de ser considerado por muitos algo inerente ao ser humano desde seu surgimento, a binariedade é construída a partir do contexto social, histórico e cultural, e esses indivíduos de certa forma se “desprendem” do papel opressor da normatividade de gênero.
Joy se percebeu lésbica e se assumiu à família aos 18 anos, fazendo uma mudança radical na aparência. Hoje, com 20 anos, se assume não-binarie. “Eu não ligo de me chamarem de menino ou menina. E eu fui percebendo isso ao passar do tempo que isso não me incomodava. Eu não sinto nenhum tipo de pressão da sociedade, só que eu não consigo tolerar nenhum tipo de preconceito. ofensa me chamando de menino”.
A discussão sobre a inclusão de pronomes neutros é outra pauta importante para a comunidade NB. A Suécia, por exemplo, incluiu em 2015 o pronome neutro hen ao Dicionário da Academia Sueca, como alternativa aos pronomes hon e han, feminino e masculino, respectivamente. O fato se deu no começo do século XX por conta da popularização do uso, quando parte da comunidade trans no país aderiu à palavra.
Há uma facilidade maior em idiomas como o alemão e sueco, os quais já possuem um pronome neutro - no caso da Alemanha, em 2018 foi incorporado às leis do país a existência de um “terceiro gênero”, o intersex, facilitando também a adaptação das pessoas no uso dos pronomes - e, apesar das opiniões a respeito do uso do pronome ainda variarem bastante, atualmente é possível encontrá-lo em diversos textos acadêmicos e jornalísticos, além de ser usado em situações cotidianas de comunicação entre alguns falantes, desvencilhando-se assim da conotação que carregava anteriormente por ser utilizado apenas por grupos ativistas. Atualmente, há não-bináries que não aceitam serem tratados no feminino ou masculino.
As mudanças na língua portuguesa surgiram primeiramente marcadas por “@”, como tentativa de marcação simultânea de masculino e feminino; logo após, surgiu a tentativa de utilizar “x” para omitir vogais e neutralizar a conjugação de gênero. Embora inclusivas para uns, ambas as grafias se assemelham no sentido de que só podem ocorrer na modalidade escrita, além de dificultarem a utilização de ledores (leitores automáticos para deficientes visuais). Justamente por essas razões houve uma reforma na utilização de pronomes neutros, sugerindo o uso de “e” para omitir a demarcação de gênero masculino/feminino, mas sendo passível de pronúncia em língua oralizada.
Há alguns anos atrás, a possibilidade do uso de pronomes neutros no Brasil era apenas um borrão. E as línguas latinas, por terem a característica gramatical que classifica coisas e pessoas em categorias masculinas e femininas, são especialmente problemáticas. Entretanto, achar que você sabe a identidade de gênero de alguém somente pela aparência não é mais uma realidade.
“Minha família não entende, então eles me chamam de [nome morto]**. Isso é meio incômodo, mas eu me acostumei”, diz Alex, 21 anos. Para ele, que prefere o uso de pronomes masculinos no momento, o conceito de gênero sempre foi confuso. Por meio de um conhecido da comunidade trans, Alex pode se perceber não-binário e, posteriormente, genderfluid. “ E como não-binário, bissexual e negro, ele diz estar ciente do preconceito existente. “Acho que o mais difícil foi perceber o quão diferente eu sou, não porque eu quero ser normal, mas porque ser diferente tem um custo muito alto na sociedade em que a gente vive”. Porém, mesmo com vários desafios, Alex se diz muito melhor se percebendo não-binário uma vez em que pensar apenas a binariedade como identidade de gênero o deixava mal: “Mas eu não mudaria. Agora eu sou mais feliz porque eu sei mais quem eu sou. Eu performo meu eu de acordo com como me sinto, e isso é muito rebelde”.
** "nome morto" é um termo utilizado pela comunidade trans para se referir ao nome e identidade de nascença, anterior à descoberta de gênero.