
Por Natália Matvyenko
O funk fincou raízes em São Paulo nos anos 1990, marcando o início de uma adaptação vitalícia do funk carioca. Nessa fase embrionária, DJs e MCs locais infundiram o ritmo com sotaques e referências próprias, estabelecendo as bases do gênero. Nomes como a dupla Jorginho & Daniel, que celebram 30 anos de estrada com o ritmo de festa, e Felipe Boladão, que puxou o movimento para o lado do "funk consciente", são marcos dessa fundação. A cena rapidamente se consolidou nos bailes de periferia que incluíam clubes, lajes e, sobretudo, bailes de rua, onde o som se tornava onipresente, ecoando a força de um movimento que resistia ao confinamento.
Essa evolução ganhou corpo nos anos 2000, quando o funk ostentação ascendeu, servindo como espelho tanto da realidade quanto dos ambiciosos sonhos de ascensão da juventude periférica. Em 2010, São Paulo se estabeleceu definitivamente como um polo criativo. Artistas como Guimê, Daleste e MC Kauan, ao lado de figuras cariocas que fizeram sucesso estrondoso na capital, como Pocahontas (hoje Pocah), Mc Beyoncé (Ludmilla) e Mc Magrinho misturaram ostentação e putaria,
A força do funk paulista nunca parou de se afirmar, transcendendo a música. Mais tarde, as irmãs Tasha & Tracie expandiram as fronteiras, misturando rap, funk e trap. Nascidas no Jardim Peri, elas começaram como DJs ainda bem jovens, circulando por batalhas de rima e festas de quebrada, transformaram seus trabalhos em uma fusão de música, moda e ativismo periférico. A revisitação de marcas como Cyclone e o uso de Mizuno e 12 molas como artigo de orgulho e não mais de chacota pela classe média paulistana, que antes era "coisa de maloqueiro", tomaram as passarelas e se tornou objeto de admiração, como ilustra o verso de Mano Brown em Nego Drama do Racionais Mc's "Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu! Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia? Seu filho quer ser preto, ah, que ironia, cola o pôster do 2Pac aí, que tal?".
Provando que o funk é uma afirmação cultural e política, a partir de 2020 houve um notável retorno dos DJs à linha de frente, ao lado dos MCs, em um movimento que reafirma as origens da batida. Nomes como DJ Mu5ão, DJ Arana e DJ Th4ys demonstram que a batida paulista está em constante mutação. Entre um story do Instagram e outro, ela agita o cabelo cor de mel e sorri se divertindo com seus amigos em festas que marca presença como DJ. O grave do funk atravessa o corpo de quem dança, as batidas ecoam como um ritual coletivo e libertador. Para ela, não se trata apenas de animar o público — é bruxaria, é raiz, é liberdade.
Num rolê de amigas em comum e a desenvoltura de comandar a festa já me intrigou. Beatriz Pereira de Souza tem 24 anos e descobriu a música ainda criança, onde muitos artistas brasileiros a encontram, na igreja. Não gostava dos cultos, mas se deixava levar pelo encanto dos louvores e instrumentos. Ali, entre bancos e hinos religiosos, aprendeu os primeiros acordes no piano e foi testando instrumentos às “escondidas” após os ensaios. O ambiente era rígido e conservador, mas a música lhe abriu uma fenda de possibilidades: “eu posso tocar o que eu quiser”, pensou, ainda adolescente. Em duas conversas sobre sua história o que é de fato, intrigante, o primeiro papo foi algo mais descontraído e solto, em meio a fumaça de tabaco, erva e dança, falamos sobre música e Bea compartilhou um pouco da sua jornada que apesar de pouca idade é complexa.A cada transição, sente que não está sozinha: se sente parte do coletivo e se sente ela mesma.
Destaca que as mulheres, desde cedo, demonstraram uma força tremenda. A MC Menorzinha, irmã do Menor, foi um exemplo disso, começou a cantar criança e, aos 12 anos, já estava estourada com hits como “Bonde da Ecko Red” e “A Melhor do Baile”, sua presença nos bailes e em palcos como o extinto Playcenter já atestava a força feminina e jovem na cena desde cedo.
A liberdade de Bea, ao contrário de Menorzinha, no entanto, só foi sendo construída e fortalecida quando em 2021, saiu de casa após enfrentar a violência de não ser aceita como mulher bissexual em um lar religioso. Encontrou acolhimento em uma república estudantil conhecida como P1, onde a música voltou a pulsar em sua vida. Ali, entre gringos e amigos que se tornaram família, surgiram as primeiras festas e contato com a controladora, aparelho que os DJ’s usam pra discotecar. Um dos moradores tinha o equipamento, e foi nesse improviso que nasceu o selo que leva o mesmo nome da casa. Era o embrião do que viria a se tornar sua trajetória como alma da festa.
Daí não parou mais. Se a igreja lhe ensinou os fundamentos da música, foi a vivência quem moldou sua essência. Relembrando o passado, conta que cresceu na quebrada – coincidentemente próxima a que cresci também, vivi 16 anos no Jardim Elba, na Zona Leste de São Paulo – ouvindo os bailes da laje de casa sem poder participar, pois seus pais não permitiam. Mas o som atravessava os muros. Quando enfim começou a discotecar, trouxe para a pista o que sempre esteve em sua memória: o funk da periferia, mais especificamente o subgênero nomeado de Bruxaria.
Esse estilo que mescla agudos com sons experimentais e obscuros com efeitos sonoros do audiovisual e uma salada muito bem estudada de experimental, se popularizou no final da pandemia de Covid-19, depois do Mandelão, outro subgênero que desaguaria no que temos hoje nos bailes de rua de São Paulo. No meio da segunda festa que nos encontramos, Beatriz me diz algo marcante: É a minha essência pura. É cultivar a minha raiz e fazer com que a pista sinta a força dessa raiz também.
Como há milhares de anos, a experiência de fazer e ouvir música beira o espiritual. Quando toca, Bea entra em transe: não se prende ao que passou nem se preocupa com o que virá. Está inteira no instante, diz — A liberdade está no presente. É isso que eu jogo na pista. Quando você dança, você está livre, completa — Para ela, DJ não é só quem seleciona músicas, mas quem conduz a festa a esse estado de liberdade coletiva.
Com pouco tempo de trajetória mas muitas vidas de história, já fundou seu próprio selo, P1 Records, nome em homenagem a moradia que reside com os amigos e colegas de corre, vem se conectando a outros coletivos que fomentam a cena underground. Não são apenas festas: são espaços de cultura, educação e resistência. Ao mesmo tempo, tem consciência de que o cenário ainda é desigual mesmo não tendo sofrido nenhuma violência direta na cena, homem ainda tem mais privilégio, até porque um ajuda o outro. Mas as mulheres estão se movimentando com força e mudando esse cenário, reflete. Hoje, Bea olha para trás e reconhece que tudo se costura: a menina curiosa da igreja, a adolescente que aprendeu bateria e violão sozinha, a jovem que rompeu com o que barrava sua liberdade e encontrou abrigo entre amigos. Cada instrumento que aprendeu a tocar é um pedaço dela. Cada festa que conduz é uma oferenda à sua história e à sua caminhada na música.