Museu dos Aflitos resgata história preta do bairro da Liberdade

Projeto conta a história escondida da região que é associada a origem oriental
por
Daniella Ramos
Martim Tarifa
|
23/10/2025 - 12h

O Museu dos Aflitos tem como principal objetivo manter viva as raízes vindas de África no bairro da Liberdade, o qual atualmente é representado por decorações e comércios asiáticos. “O povo tem direito a ancestralidade”, reforça Cleide Aparecida Vitorino, mulher negra de 59 anos que estava acompanhando a visitação. 

Os guias, Luisão Cruz e Geovanna Perez descrevem o trabalho realizado como educação patrimonial. As caminhadas guiadas pelas ruas do centro da cidade vão além de lazer e turismo, buscam fatos históricos. As ruas por onde andamos hoje, já abrigaram pontos para linchamento de pessoas negras. O museu não tem um espaço físico como os tradicionais, seu acervo são as ruas, monumentos e histórias do centro de São Paulo.  

O escritor José Abílio Ferreira, mestre em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela USP, reforça: "É importante, fundamental, essencial e indispensável nos reconhecermos em um espaço. Quando a história de São Paulo, no caso específico do bairro da Liberdade, é redescoberta estamos recuperando nossa humanidade".

Os educadores, além de lidarem com os desafios da missão educativa da visitação, enfrentam a dificuldade de locomoção em grupo na feira da Praça da Liberdade, mantendo sempre atenção para que nenhum visitante acabe se perdendo do grupo.  

O encontro com os participantes acontece na Igreja de São Gonçalo, que antigamente era o morro da forca. O passeio começa com uma conversa descontraída durante a primeira parte do trajeto: Luisão fala sobre a boa relação do projeto com o padre da igreja, relembrando que antigamente era necessário se ajoelhar no milho nas missas, mas que hoje os tempos são outros e conta como trata a relação com seu filho na atualidade e os desafios da paternidade. 

"A história negra e indígena do bairro da Liberdade é a história de uma periferia que já existia em relação ao triângulo histórico [tem como vértices os três conventos em torno ao Colégio dos Jesuítas, o Mosteiro de São Bento, o atual Poupa tempo da Sé e a Faculdade de Direito no Largo São Francisco]", complementa José Abílio. 

Ao chegar no largo Sete de Setembro, os educadores iniciam de fato as atividades pedindo a participação dos visitantes. São entregues cartas com números para cada um, que são lidas em ordem posteriormente. Ainda ali no largo, a carta de número 1 e 2 são lidas para contar a história dos escravizados que caminhavam da praça até a antiga prisão, onde hoje existe um prédio residencial.  

Um pouco mais a frente, passamos por um pelourinho que hoje funciona como sistema de ventilação do metrô e conta com uma discreta placa azul que marca sua história. Seguimos na Avenida da Liberdade até chegar à famosa Praça da Liberdade, onde a competição com outros grupos de passeio e a própria feira da praça fez a guia Geovanna, procurar um lugar mais calmo para nos sentarmos e onde pudéssemos ouvi-la.  

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Placa no Largo Sete de Setembro que identifica que era o pelourinho. Foto: Daniella Ramos/AGEMT

A educadora então distribui imagens, ilustrações e documentos referentes a Francisco José das Chagas, pois ali ela conta toda a história de como ele se tornou o santo popular da capela dos aflitos, o Chaguinhas.  

Durante a visita, Cleide Aparecida Vitorino, chamou a atenção com seu largo sorriso e sempre muito atenta aos detalhes. Ela conta, em entrevista à AGEMT, que essa visita é sobre sua própria história. Professora e doutora em Direito voltado para os recortes étnicos raciais, ela elogia: “Dos grupos que já participei para visitação, achei esse mais consciente, você vê que foi investigada e bem construída”.  

A Praça da Liberdade, onde hoje se concentra grande parte da feira asiática, era onde aconteciam os enforcamentos. Naquele lugar, tentaram enforcar Chaguinhas três vezes, mas em todas a corda arrebentou. Geovanna então nos conta que o bairro acabou recebendo mais tarde o nome de Liberdade porque a população gritava “liberdade, liberdade, liberdade de Chaguinhas” e ainda complementa que vendo a força que ele vinha tomando, as autoridades resolvem matá-lo. Mas Chaguinhas já havia conquistado a população com sua história e o povo preto de São Paulo nunca deixou que se esquecessem de quem ele era e o que ele sofreu.  

Com isso, a Capela dos Aflitos se tornou um ponto de homenagem a Chaguinhas. Antes da capela ser fechada para restauração, em maio deste ano, Cleide conta que era comum entrarem na capela, bater 3 vezes na porta, fazer os pedidos e promessas, faziam uma reverência mesmo sendo de outras religiões. 

Cleide ainda conta que as reivindicações para a restauração da Capela dos Aflitos vêm desde o governo de Mario Covas, apesar do governador ter apoiado a importância da memória dessa ancestralidade, ele nunca olhou para essa questão de cuidar de um monumento que é importante para história negra. 

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Placa localizada na saída do metrô que fica no meio da Praça da Liberdade. Foto: Daniella Ramos/AGEMT

  

A visitação continua no sentido da Rua dos Aflitos, onde fica localizada a Capela dos Aflitos. O caminho até lá é conturbado, pois enquanto o grupo tenta se manter unido para chegar à rua certa, a multidão da feira dificulta. A rua da capela, tomada por uma feira de produtos naturais, mal tem espaço para o grupo se juntar em frente ao patrimônio e ouvir os educadores.  

Enquanto Geovanna grita para que todos consigam ouvir sua explicação, um DJ ao fundo mantém um rock no último volume. Luisão então toma a frente e com uma voz mais alta complementa a explicação de que ali, onde existe a feira, é um lugar sagrado porque debaixo do asfalto existe o cemitério dos Aflitos e acredita-se que Chaguinhas tenha sido sepultado ali. “Você tem a capela ali, deveria ter esse cuidado com o som da feira”, comenta Cleide. 

Em uma conversa mais intimista ao fim da visita à Capela, Geovanna conta que estão tentando tornar a rua inteira um patrimônio tombado para que não haja mais toda aquela movimentação e barulho em um ambiente espiritual.  

"O bairro da Liberdade, a estação de metrô e a praça, não são Japão-Liberdade, formam apenas um território Liberdade, que abriga e acolhe as diversas etnias e nacionalidades que construíram essa região", finaliza Abílio Ferreira.

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