Iniciativas educacionais e artísticas lideradas por pessoas negras estão democratizando o acesso à cultura na periferia de Guarulhos, região metropolitana do Estado de São Paulo. O objetivo desses movimentos é empoderar a cultura periférica por meio do estímulo ao debate e à solidariedade.
Segundo o Mapa do Ensino Superior divulgado em maio deste ano pelo Instituto Semesp, 61% dos jovens da classe A estão matriculados em instituições de ensino superior, enquanto apenas 10,5% dos jovens da classe E acessam a graduação. O Cursinho Comunitário Cora Coralina, localizado no bairro Bom Clima, busca transformar esses dados e aumentar a taxa de adolescentes de baixa renda nas universidades. Fundado em 2013, hoje o Cursinho conta com mais de 50 colaboradores e atende cerca de 40 alunos por ano. No entanto, em vista da pandemia, suas atividades estão suspensas, assim como os demais movimentos culturais a serem citados.
Colecionando aprovações em diversas instituições do país, o Cursinho Comunitário não se limita à realização das aulas aos fins de semana, mas também desenvolve atividades extracurriculares que estimulam a cidadania. São eventos como palestras, sessões de filmes e passeios às universidades e museus.
“Ser um bom cidadão não significa apenas ter um domínio das disciplinas escolares, mas conseguir compreender a realidade, a cultura da sua cidade, do seu país e conseguir socializar. Nesse sentido, sempre tentamos trazer atividades que se relacionam tanto com a realidade local, quanto com a demanda dos vestibulares”, declara Saulo.
Também localizado no bairro Bom Clima, o Karamujo Cultural é um evento ocorrido todo o primeiro domingo do mês e que reúne apresentações musicais, oficinas de leitura, gincanas infantis, dança e teatro.
Um dos líderes e fundadores do projeto é o músico e motofretista Roberto Preto, 36, afirmou em entrevista sucedida via chamada de vídeo por Whatsapp que a criação do projeto se deu pela necessidade de valorizar o espaço público, estimular a cultura local e a convivência entre moradores.
“Os eventos culturais, unidos com os movimentos educacionais podem produzir a transformação que o país precisa”, afirma Preto. Para ele, uma das melhores propostas do Karamujo Cultural são as ações voltadas às crianças: “Muitas vezes alguma criança chega dizendo ‘tio, ontem foi meu aniversário e eu nem ganhei parabéns’ e isso aperta o coração. Então, decidimos que todo o Karamujo teria bolo para as crianças aniversariantes do mês”, conta.
Roberto Preto defende que os projetos culturais são sistemas de mão dupla: ao mesmo tempo em que os líderes do evento levam felicidade ao público, esse corresponde da mesma maneira. “Quando estou falando no microfone, sinto que estou sendo bombardeado de energias boas. Com isso, não tem como não crescer, é inevitável. A mente que se expande jamais volta ao tamanho original”, conclui.
O Karamujo Cultural é um evento muito respeitado pela comunidade. Apesar de possuir licença de funcionamento pela Prefeitura de Guarulhos, a Polícia Militar e a Guarda Civil Municipal já tentaram intervir na realização do evento. O mesmo conflito com as autoridades ocorreu em outro projeto periférico, o Sarau da Quebrada, que acontece duas vezes por ano, na Praça da Estrela, no bairro Cidade Soberana.
Uma das líderes do sarau, Érica Teixeira, revelou em entrevista por vídeochamada que, na terceira edição do evento, em 2018, policiais chegaram com viaturas e cães de guarda enquanto a equipe de organização arrumava o local. “Começaram a fazer várias perguntas. Diziam que não poderíamos fazer o evento, enquanto mostravam um panfleto que tínhamos usado para promover o sarau”, conta.
Ela ainda relatou que revistaram alguns garotos sentados na praça, pois diziam ter recebido uma denúncia anônima. Apesar do conflito, o sarau resistiu e, hoje, já conta com seis edições realizadas. “O nosso intuito é valorizar e incentivar toda a arte que já acontecia na quebrada, mas não tinha chance de se mostrar. Queremos ser um ambiente livre para pessoas comuns partilharem”.
“Muitos falam que nós da quebrada temos que ir para os grandes centros. Só que essas mesmas pessoas também são necessárias onde nasceram, porque são elas que falam com propriedade sobre esse lugar.”, complementa.
Teixeira ainda conta que muitas pessoas que participaram algumas vezes do sarau, acabaram se tornando produtores culturais ou líderes de projetos semelhantes: “O nosso grito de resistência está ecoando e isso nos deixa muito feliz.”