Por Marcela Rocha (texto) e Stefany Santos (audiovisual)
Sandra Selma é moradora de uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Apelidada de “Nayara” pelos familiares e colegas, conta com felicidade que já tem duas casas fixas para trabalhar duas vezes por semana, todas as quintas e sextas-feiras. O apelido veio através de uma promessa que fez para a mãe, pois a segunda escolha de seu nome depois de Sandra teria sido Nayara, e por isso prometeu para a mãe que se tivesse uma filha mulher, colocaria o nome de Nayara. Acabou que teve apenas um filho, menino, e para fazer jus à promessa, quando trabalhou como dançarina de forró usou o nome artístico de Nayara, como é conhecida até hoje.
A atual diarista e ex-dançarina conta que se alguém chegar na ocupação Marielle Franco, localizada no extremo-sul da cidade de São Paulo no bairro do Grajaú procurando por Sandrinha, ninguém vai saber responder quem é, mas ao chegar procurando por Nayara vão dizer exatamente onde ela está. A acampada conheceu a ocupação através da indicação do cunhado, e acabou participando todos os finais de semana. “Eu fui gostando de pisar no barro, né. Fui sentindo o sabor que era.” O amigo, Rodrigo Cavalcante, também presente, brinca: “o mosquitinho da lona preta picou você.” Sandra balança com a cabeça, confirmando, enquanto continua sua fala.
Das responsabilidades de um coordenador do Núcleo de Tecnologia, função exercida por Sandrinha, está a de averiguar e fiscalizar os serviços, além de treinar novas trabalhadoras diaristas para realizar as atividades da profissão. O movimento percebeu a necessidade de desenvolver um núcleo para tratar de assuntos tecnológicos conforme os militantes e moradores das ocupações relataram suas experiências com a tecnologia e com os contratantes de serviços. Hoje o núcleo conta com 200 pessoas envolvidas em atividade e 230 trabalhadores engajados pela forma inovadora e articulada de contratação de serviços desenvolvida pelo movimento, por onde Sandrinha teve seus serviços de diarista solicitados e hoje conta com a segurança de ter trabalho fixo e melhor remunerado, duas vezes por semana.
O Núcleo de Tecnologia
O Núcleo de tecnologia surgiu organicamente através de reuniões de outros setores, como o Setor de Comunicação em que Felipe Bonel atua até hoje. O militante ingressou no MTST em 2018, motivado a partir dos atos e manifestações políticas de 2013, que para Felipe “tratava-se basicamente de uma movimentação coordenada para executar as reformas neoliberais que não favoreciam a nenhum trabalhador no Brasil”, relatando sobre quando entendeu a importância de se organizar politicamente.
Na época em que Felipe somou-se à comunicação do movimento, o setor contava com a atuação de outros companheiros que já tinham alguma experiência ou interesse em tecnologia. Juntos, eles iniciaram discussões sobre um projeto tecnológico que fizesse sentido e relevância para os trabalhadores das ocupações, contexto em que a maioria dos acampados têm apenas um celular com um limitado serviço de dados para acesso à internet e pouco espaço de armazenamento de aplicativos.
Foram lançadas três frentes que orientam o Núcleo de Tecnologia desde então: a primeira, uma frente de formação política e capacitação de educadores de tecnologia que devem passar o conhecimento para os acampados de ocupações e outros interessados em aprender programação, uma segunda frente de desenvolvimento de software e por fim uma terceira frente que pudesse emancipar e tirar as pessoas da posição de subemprego, inserindo os trabalhadores na força de trabalho não precarizada, saindo dessa ideia o projeto Contrate Quem Luta, atuando com uma lógica de cooperativismo entre o trabalhador e quem solicita os serviços.
Capacitação de educadores e formação política
A primeira grande ação do Núcleo de Tecnologia foi o oferecimento de um curso piloto de Python, uma das linguagens de programação, para acampados, militantes e filhos de militantes do movimento. O objetivo principal do curso era desenvolver um sistema de automação para a horta de um condomínio localizado no extremo-oeste, conquistado pelo MTST a partir da luta política. O que já foi a ocupação Dandara, hoje é um condomínio de mesmo nome, e que agora conta com horta automatizada elaborada pelos próprios moradores e militantes capacitados pelo curso de tecnologia.
Durante o processo de capacitação, para além da técnica, os alunos passam por uma formação política para que estejam genuinamente engajados em passar o conhecimento adquirido adiante para as próximas turmas de alunos e para que saibam valorizar a coletividade e o próprio trabalho. No que diz respeito a valorização da autoestima e da mão de obra do trabalhador, a terceira frente ganha maior relevância: conheça agora o Contrate Quem Luta.
Quem Luta
Um imóvel de dois andares com cômodos extensos, mobiliados e ilustrados com imagens de setores do movimento, na parte dos fundos, um grupo se reúne. Sentados em cadeiras escolares ao redor de uma mesa redonda, estão Rodrigo Carvalho Leandro, um ex-acampado de ocupação e trabalhador contratado através do Contrate Quem Luta; Felipe de Souza Silva, integrante do movimento; Sérgio Domingos, companheiro de trabalho de Rodrigo e Sandra Selma, já mencionada.
A casa é uma das sedes de luta do MTST, sendo utilizada para encontros sazonais, reuniões internas do movimento e por vezes para receber a imprensa. Rodrigo, ou “fofão” como é conhecido por amigos, trabalha com de tudo um pouco, desde reparo e manutenção de aparelhos domésticos à atividades de mecânica de automóveis. Naquele dia tinha acabado de terminar um serviço que prestou com o auxílio de Sérgio.
Sérgio não faz parte do Contrate Quem Luta e não participa do movimento. A motivação que o faz ser chamado para trabalhos com Rodrigo Fofão é a consciência de classe trabalhadora que os dois amigos dividem. Rodrigo conta que ele e Sérgio moram na mesma região e que ele sabe das dificuldades que o povo enfrenta, e por isso chamou o companheiro para se juntar a ele nesse serviço.
Rodrigo Fofão, assim como Sandrinha, também integra o grupo de militantes que coordena o Núcleo de Tecnologia. Os coordenadores providenciam ferramentas e fecham orçamentos para os trabalhadores: “Muita gente não consegue nem fechar um orçamento, não sabe ler nem escrever, mas sabem trabalhar”, relata Rodrigo.
O Contrate Quem Luta inicialmente funcionava como um número de WhatsApp em que as pessoas mandavam mensagem quando estavam precisando de um serviço. Os serviços oferecidos são diversos, contando com trabalhadores da construção civil, manicures, diaristas, eletricistas, cuidador, cozinheiro e muito mais.
Ao receber uma mensagem, quem estivesse com o aparelho celular no momento responderia. Normalmente a tarefa de responder os solicitantes de serviços era de algum militante. O trabalhador mais próximo da região do contratante tinha prioridade na prestação do serviço. Na época, uma turma de universitários formandos demonstrou interesse em transformar o mecanismo em um aplicativo de smartphone, mas aparentemente escolheram outro projeto para TCC, porque não deram mais notícias depois disso.
O responsável pelo setor de comunicação da época, Leon, hoje já falecido, questionou sobre transformar o diálogo antes realizado por um militante, em um bot. Os bots, como são chamados os web robôs, são softwares desenvolvidos para simular ações humanas. Dessa forma, um robô poderia responder o solicitante de maneira automática e agilizar a contratação.
A partir disso o movimento mobilizou uma ação interna para montar uma equipe interessada em criar o bot para WhatsApp. De maneira prática e pouco custosa, o Núcleo de Tecnologia demonstrou ser possível o desenvolvimento de uma proposta relevante, acessível e coletiva para os trabalhadores. O bot sofreu transformações ao longo do tempo, porque ao contrário do consenso de que a tecnologia sempre vem para solucionar problemas, o que pode acontecer é que a própria inovação tecnológica passa a criar novos problemas.
No caso do bot, ao solicitar um serviço, o trabalhador mais próximo da região do solicitante tinha prioridade no atendimento, isso porque considerou-se que os trabalhadores próximos gastariam menos com condução, o que causou uma concentração de pedido para os trabalhadores das regiões centrais, evitando a possibilidade de trabalho para trabalhadores de regiões periféricas.
A tarefa dos coordenadores passa por escutar e entender as necessidades dos trabalhadores. Nas reuniões, estão presentes os trabalhadores acampados interessados em participar do Contrate Quem Luta, os militantes do Núcleo e desenvolvedores do bot. É nesse momento que ocorre a troca de informações para eventuais melhorias no mecanismo do bot.
“O movimento não cobra nada de ninguém, cobra apenas participação (...). Não é um aplicativo que quer só dar o trabalho, tipo, dá o trabalho aí e se vira. Quer instruir a pessoa que tem direitos trabalhistas, que tem direito a mais. Que às vezes o trabalhador é oprimido.”, reforça Rodrigo sobre a proposta de formação política de trabalhadores oferecida pelo movimento.
O que veio como uma solução simples, se demonstrou uma questão ainda mais complexa do que o movimento esperava lidar. A partir disso, o Contrate Quem Luta sofreu intervenções para mudar a estratégia. O robô contava com um banco de dados de trabalhadores cadastrados, fazendo a triangulação da triagem do atendimento, com finalidade de direcionar o tipo de serviço desejado para o trabalhador do ramo correto.
O Núcleo passou a ser convidado para participar de palestras em centros de discussão sobre soberania digital e divulgação de ações de criação e gestão de ferramentas tecnológicas. Atualmente o movimento conta com 200 militantes dedicados ao ensino e aprendizagem da tecnologia e desenvolvimento de projetos para emancipação tecnológica da classe trabalhadora.
Tecnopolítica e tecnosolucionismo
Através do Contrate Quem Luta, sem patrão, os trabalhadores negociam as condições de trabalho diretamente com os contratantes dos serviços. O dispositivo não se propõe a ser uma plataforma intermediária de acordo, mas sim, devolver aos trabalhadores a autonomia de determinar o valor do próprio trabalho, em contrapartida a mercadologia neoliberal de deixar que o cliente precifique os serviços.
Os prestadores de serviços cadastrados passam a ter uma base de valores mínimos por cada tipo de serviço, para que nenhum trabalhador seja desvalorizado. O Contrate Quem luta não cobra nenhum tipo de taxa dos trabalhadores e não fica encarregado de repassar valores de remuneração pelos serviços, o salário é negociado e recebido diretamente pelos trabalhadores.
Diferente da proposta de plataforma do movimento, as bigtechs atuam sob outra lógica, oferecendo plataformas que até dão chance de trabalho e de renda, mas que capturam parte da remuneração dos trabalhadores. Evgeny Morozov, conhecido pesquisador, crítico e estudioso da tecnologia, tem diversos livros publicados sobre a problemática cultural que a tecnologia provoca. De acordo com o autor, tem-se a ideia de que a tecnologia sempre vem para solucionar problemas, como se existisse evolução tecnológica e que uma tecnologia necessariamente sempre supera a outra.
Em reportagem de título “Solucionismo, nova aposta das elites globais” escrita por Evgeny e publicada pelo veículo Outras Palavras, o pesquisador comentou sobre como o neoliberalismo cria respostas simples tecnológicas para questões complexas, convencendo as massas de que as possibilidades tecnológicas não ultrapassam o aspecto individual, desconsiderando que uma realidade de melhorias coletivas é possível. Em sua fala Morozov utiliza do caos urbano do transporte público, que para as empresas de tecnologia acaba sendo mais rentável oferecer aplicativos para os usuários criarem estratégias para evitar o transporte em horários de pico, em vez de oferecer mais linhas de ônibus e evitar a superlotação e congestionamento em áreas centrais, por exemplo. “As plataformas digitais atuais são locais de consumo individualizado, não de assistência nem de solidariedade mútuas.”, ressalta.
Felipe de Souza Silva, relata sobre como o MTST pôs em prática formas alternativas de tecnologia solidária. A principal razão é a motivação do grupo que desenvolve as políticas tecnológicas do movimento: a organização da classe trabalhadora.