Em um contexto onde a inteligência artificial (IA) está se desenvolvendo rapidamente em várias áreas criativas, duas grandes referências em animação foram vítimas da falta de pagamento dos direitos autorais pelas big techs. Recentemente, as redes sociais foram inundadas por imagens produzidas por IA que replicaram o estilo inconfundível da Turma da Mônica, resultando em uma reação imediata da Maurício de Sousa Produções, que divulgou uma nota condenando o uso não autorizado de sua propriedade intelectual. Ouvir matéria em áudio.
Paralelamente, o renomado Studio Ghibli também se viu no centro das atenções quando a nova funcionalidade da OpenAI viralizou ao permitir que os usuários transformassem qualquer imagem em ilustrações na estética das animações japonesas. A situação gerou desconforto em artistas e fãs do estúdio que trouxeram à tona uma fala de Hayao Miyazaki (co-fundador do Studio Ghibli) em 2016, que ao ser apresentado a proposta de animação com IA, classificou o uso da tecnologia como “um insulto à própria vida”. Para entender melhor esse embate entre a tradição artística e a inovação tecnológica, conversamos com o cartunista Maurício Pinheiro e com o advogado Danilo Brum, que nos ajudaram a entender as questões éticas e jurídicas deste novo cenário.

As fronteiras entre a criação humana e a geração automatizada vem se tornando cada vez mais tênues e o debate ganha novos contornos quando abordamos a preservação da identidade artística. “A partir do momento que você muda a maneira de como fazer arte, você também muda a maneira como o profissional executa aquele trabalho. Então, corre sim o risco de você extinguir toda uma classe de artistas", afirma o cartunista Maurício Pinheiro em entrevista à AGEMT. E acrescenta: "você faz com que o artista não precise mais aprender aquele ofício, porque vai ser uma situação de digitar dados e você não vai precisar mais de todo aquele conhecimento", diz Pinheiro.
Além do dano causado aos artistas, o uso da inteligência artificial levanta questões legais complexas, como explica o advogado Danilo Brum. "O conceito jurídico de 'obra derivada', previsto no art. 5º, I da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), inclui adaptações, traduções, arranjos e outras formas de transformação de obras originais. No entanto, um grande desafio atual é determinar se conteúdos gerados por inteligência artificial — que muitas vezes não copiam diretamente uma obra, mas se inspiram fortemente em seu estilo, estética ou estrutura narrativa — também podem ser enquadrados como obras derivadas não autorizadas", preocupa-se Brum.
Para o advogado, "essa análise revela uma lacuna legislativa que precisa ser urgentemente abordada, especialmente considerando que a tecnologia avança mais rapidamente do que as leis que deveriam regulá-la". A trend com imagens geradas artificialmente começou no final de março. depois de uma atualização da OpenAI, que permitia a criação de imagens a partir de fotos e instruções do usuário. Desde então, foram milhares de posts nas redes sociais que imitavam o estilo de “Meu amigo, Totoro”.
“O Serviço de entregas de Kiki” e “O menino e a Garça” – obras do estúdio Ghibli. Logo após o ‘boom’ dos desenhos feitos com ferramentas de IA, a série de quadrinhos ‘‘Turma da Mônica’’ virou tendência no X (antigo Twitter) com os traços do estúdio Mauricio de Sousa sendo replicados por modelos generativos em diversas versões que associam os personagens com discursos que vão contra os valores do Estúdio. Maurício Pinheiro explica que a simplicidade de criar arte em poucos minutos desqualifica os anos de estudo que o artista teve e promove o desinteresse monetário no trabalho dele. “O artista vai simplesmente digitar o texto certo e a inteligência artificial vai fazer o trabalho para ele. Sendo assim, ele perde a utilidade e também perde o princípio de tudo aquilo que foi aprendido e conquistado durante anos de trabalho, de talento e de estudo”, afirma.
Nos Estados Unidos, as obras feitas por inteligência artificial já são reconhecidas como artes autorais pela United States Copyright Office (USCO), que concedeu a primeira proteção de direitos autorais para a obra “A Single Piece of American Cheese”, criada por Kent Keirsey, CEO da plataforma Invoke. A imagem foi gerada por IA, mas editada pelo autor, que precisou comprovar sua autoria por meio de vídeos, comandos e outros processos de criação que evidenciassem uma contribuição significativa de sua autoria na produção final da arte.

No Brasil, “a Lei 9.610/98 parte da premissa de que a criação é fruto de um ato intelectual humano (a lei fala em "criações do espírito"), com subjetividade e intencionalidade”. De acordo ainda com Brum, a inteligência artificial no Brasil desafia os “pilares clássicos do Direito Autoral”, indo em contrapartida aos três pilares principais, autoria, originalidade e fixação. Ao produzir conteúdos que já existem e que muitas vezes são protegidos por direitos autorais, analisam padrões estatísticos, como o traço de um estilo de desenho, gerando algo “parecido” com a criação humana. Além disso, existe a questão jurídica acerca do fornecimento de dados biométricos daqueles que usaram a OpenAI para a criação das imagens sem o devido consentimento.
Danilo Brum destaca que “do ponto de vista jurídico, o consentimento válido pressupõe liberdade, informação clara e específica sobre a finalidade do uso dos dados”, conforme determinado pela Lei geral de proteção de Dados (Lei 13.709/2018). Segundo Pinheiro, existe um desafio ligado à revogação do consentimento e controle de dados já utilizados para treinar inteligências artificiais. “Em muitos casos, uma vez incorporados aos datasets, os dados não podem ser facilmente extraídos ou desvinculados, o que compromete o exercício dos direitos dos titulares, como o direito à exclusão ou à limitação do tratamento”, explica.
Diante de um avanço tecnológico que supera o ritmo da legislação, os casos relacionados à IA e a violação de direitos autorais levantam um debate sobre como considerar e regular tanto obras originais, criadas por humanos quanto aquelas geradas por máquinas, com o objetivo de enfrentar os desafios atuais e futuros para uma avaliação que ofereça segurança jurídica e ética para todos os envolvidos.