Micotoxinas são inimigos invisíveis presentes nos alimentos

Elas estão presentes em alimentos como grãos e especiarias e são um risco à saúde amplamente desconhecido.
por
NINA JANUZZI DA GLORIA
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24/09/2024 - 12h

Por Nina Januzzi da Glória

 

O ar na feira-livre de Perdizes é impregnado por uma vibrante mistura de aromas que se mesclam a cada passo: frutas frescas, ervas recém-colhidas, o toque apimentado das especiarias e aquele cheiro leve de terra úmida vindo das raízes expostas nas bancas. As barracas se alinham ao longo da rua, criando um verdadeiro mosaico de cores. O vermelho vivo dos tomates se contrasta com o laranja das cenouras e o amarelo das mangas que brilham ao sol da manhã. Penduradas nas estruturas de metal, as folhas verdes das alfaces e das couves balançam suavemente com a brisa, liberando um cheiro fresco e natural que convida os passantes a se aproximarem.

Os sons da feira são uma sinfonia própria: feirantes gritam suas promoções com entusiasmo, oferecendo abacates suculentos ou melancias frescas com gritos de “doce igual mel”. O barulho dos sacos de plástico sendo abertos, o tilintar das moedas e o burburinho constante de conversas animadas enchem o ar, enquanto os clientes circulam pelas barracas, atentos a cada detalhe. Homens e mulheres com sacolas de pano nas mãos escolhem minuciosamente o que levar para casa. Um idoso observa atentamente as frutas, apalpando as laranjas como quem avalia um velho conhecido. Mais adiante, uma mãe ensina ao filho a importância de cheirar as ervas antes de comprá-las, aproximando o manjericão do nariz do menino que ri, encantado com o aroma forte e adocicado da planta.

É difícil imaginar que algo de errado possa estar oculto em um cenário tão familiar e acolhedor. Tudo parece tão perfeitamente seguro, tão natural, que a ideia de uma ameaça invisível não passa pela cabeça de ninguém. Mas o que poucos sabem é que, entre esses produtos frescos e coloridos, algo que não pode ser visto a olho nu pode estar presente: micotoxinas.

Feira Rua Ministro Godói, bairro Perdizes  Foto: Nina J. da Gloria

Na barraca da dona Elza, o cheiro de especiarias é especialmente marcante. Uma combinação de cravo, canela e cúrcuma parece dançar pelo ar, envolvendo os clientes que se aproximam. Ela trabalha na feira há mais de 15 anos. Com suas mãos ágeis e firmes, pesa um saco de lentilhas para um cliente habitual enquanto conversa sobre as melhores receitas para preparar feijão com folhas de louro. Pergunto se ela já ouviu falar de micotoxinas. Ela franze a testa por um momento, hesita, e depois responde com um sorriso, enquanto termina de fechar o pacote com uma habilidade que só o tempo traz. E com certo espanto repete: “Micotoxinas?" E reafirma: não, que nunca ouviu falar disso. E confiando na tradição e no cuidado que sempre teve com seus produtos exclama que em sua barraca tudo é fresquinho, sem nenhum problema.

Essa despreocupação, no entanto, não é exclusividade de dona Elza. A maioria dos frequentadores da feira de Perdizes – e de qualquer outra feira-livre – desconhece o perigo representado por essas toxinas silenciosas. Elas são produzidas por fungos e podem estar presentes em alimentos comuns, como cereais, nozes, café e especiarias. E, embora sejam invisíveis, as micotoxinas têm potencial para causar danos graves à saúde humana: desde problemas hepáticos até a supressão do sistema imunológico. É uma contaminação sorrateira, que muitas vezes passa despercebida em meio ao colorido vibrante e ao frescor aparente das feiras.

Banca de frutas, especiarias   Foto: Nina J. da Gloria

A alguns quilômetros dali, o ambiente muda drasticamente. O colorido e o barulho da feira de Perdizes dão lugar à precisão e ao silêncio controlado do laboratório da Universidade de São Paulo, onde o pesquisador Eduardo Micotti da Gloria e sua equipe enfrentam de frente esse inimigo invisível. O cheiro esterilizado, frio e metálico do laboratório contrasta fortemente com os aromas vivos da feira. As superfícies de aço inoxidável e os equipamentos de alta tecnologia refletem a luz fria das lâmpadas fluorescentes, enquanto Eduardo caminha por seu ambiente de trabalho. Cada máquina tem uma função específica, desde a análise de amostras até a detecção de partículas minúsculas que os olhos humanos jamais conseguiriam ver.

Eduardo, um homem de aparência calma e de gestos precisos, me explica com entusiasmo a importância do trabalho que desenvolvem ali. Explica que as micotoxinas são mais comuns do que as pessoas imaginam. Elas podem estar em alimentos que consumimos todos os dias, como o milho, o café ou o amendoim enquanto ajusta cuidadosamente uma amostra de grãos de milho sob o microscópio. Todo o problema é que a contaminação não é visível. É possível consumir esses alimentos sem nunca perceber que estão contaminados.

                                                   

                       Equipamento usado no laboratório para análise dos grãos  Foto: Nina J. da Gloria

O pesquisador mostra uma amostra de grãos aparentemente perfeitos, tirados de um lote testado no laboratório. Ele conta que eles estão contaminados com aflatoxina, uma das micotoxinas mais perigosas. Se fossem vendidos na feira de Perdizes, ninguém suspeitaria de nada, comenta, reajustando o microscópio para mostrar os fungos que produzem essa toxina. A imagem que aparece na lente revela formas grotescas e bizarras, completamente alheias à aparência comum do milho que repousa no prato de tantas famílias. O laboratório de Eduardo pode não ser tão grande quanto as feiras ou tão movimentado quanto os campos de cultivo, mas seu trabalho é vital. Nele, a equipe está desenvolvendo novos métodos de detecção que podem ser aplicados diretamente no campo ou até em feiras, como a de Perdizes, com um sorriso de orgulho.Também mostra um protótipo de sensor automático, capaz de identificar a presença de micotoxinas em grãos sem a necessidade de processos laboratoriais demorados. O objetivo desse desenvolvimento é tornar a tecnologia acessível para todos, principalmente para os pequenos produtores, que muitas vezes não têm os recursos necessários para prevenir a contaminação.

Porém, Eduardo admite que a luta contra as micotoxinas vai além da ciência, pois é uma questão de saúde pública. O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, mas o controle sobre micotoxinas ainda é limitado. A fiscalização existe, mas é esparsa, e a falta de conhecimento entre consumidores e produtores só agrava o problema,” afirma ele, com um misto de frustração e esperança no olhar.

                                                   

     Pesquisador Eduardo Micotti da Gloria em seu laboratório, explicando sobre micotoxina   Foto: Nina J. da  Gloria

Para pequenos produtores rurais, como José dos Santos, que cultiva milho no interior de São Paulo, o problema das micotoxinas representa não só uma ameaça à saúde, mas também à sobrevivência econômica. Conta que perdeu metade da produção de milho no ano passado. Quando descobriu que estava contaminado, era tarde demais. As mãos calejadas refletindo a dureza da vida no campo e sem acesso às tecnologias avançadas, muitos agricultores como ele dependem de métodos tradicionais e da sorte para proteger suas safras. No entanto, como Eduardo explicou, a contaminação pode ocorrer facilmente durante o armazenamento, quando os grãos são expostos à umidade e ao calor, criando um ambiente ideal para o crescimento de fungos.

Ainda na feira de Perdizes, com o cheiro fresco de frutas e ervas ainda no ar, é possível refletir sobre a ironia da situação. Hoje, em uma época em que a informação está a um clique de distância, a ameaça representada pelas micotoxinas ainda é amplamente desconhecida. O trabalho de Eduardo e de tantos outros pesquisadores representa uma luz de esperança, mas não basta apenas contar com avanços tecnológicos. Para que a batalha contra essas toxinas seja realmente vencida, é necessário mais do que ciência. A palavra de ordem são políticas públicas mais rigorosas, fiscalização mais presente e, acima de tudo, conscientização coletiva. Os consumidores continuam escolhendo suas frutas e legumes com a mesma confiança de sempre, sem saber que o perigo pode estar escondido no que parece ser inofensivo. O conhecimento precisa chegar a todos, da dona de casa que faz compras semanalmente ao pequeno agricultor que depende de sua colheita. Porque, no fim, a segurança alimentar deve ser uma prioridade compartilhada por todos nós. O trabalho dos pesquisadores, como Eduardo, pode ser o primeiro passo, mas a jornada só será completa quando todos estiverem cientes e preparados para enfrentar o inimigo invisível que ronda silenciosamente nossos alimentos.