Por Laura Mariano
Como seria se tivéssemos um sistema público e privado de saúde integrados, de norte a sul do País, de maneira que contemplasse o histórico de saúde do paciente, fornecesse dados para possíveis tratamentos e diagnósticos? Parece roteiro de filme de ficção, ou um pensamento utópico, mas na verdade, essa é uma realidade muito próxima. Com os avanços tecnológicos têm sido cada vez mais comum ver a área da saúde usando ferramentas como big data, machine learning e data analytics.
Cada paciente se torna um desafio de big data, com uma carga de dados que ultrapassa a capacidade de processamento do cérebro humano. O médico intensivista e pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein e professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), Ary Serpa, explica as razões de se implementar tecnologia na saúde: “A medicina de uma forma geral, em especial na parte hospitalar, a geração de dados é gigante. [...] Uma hora o cérebro falha, é normal, somos seres humanos. Além disso, temos o exemplo de um paciente que chega na unidade inconsciente e não conseguimos contato com nenhum familiar, não temos o histórico do paciente, não sabemos se ele toma remédios ou se tem alguma doença. Pensando nesse momento que todos temos acesso à informação, é um absurdo não termos conhecimento dela. Por isso, sem dúvida nenhuma, precisamos da digitalização da medicina”, defende.
Diante da mudança no perfil demográfico e epidemiológico da população, sujeita a desenvolver novas enfermidades ao longo do tempo que podem ser evitadas, ou amenizadas por diagnósticos precoces, não faz mais sentido insistir em apenas um modelo de oferta de tratamento, focado quase que exclusivamente na saúde suplementar no século passado. A inteligência artificial (IA) tem sido encarada como uma grande aliada dos profissionais de saúde. Giovanni Sima, farmacêutico e pesquisador da Escola Paulista de Medicina e Hospital São Paulo pertencente ao Sistema Único de Saúde - SUS, analisa esse fato: “Sabemos que a maior causa de morte no mundo ocorre por condutas erradas dos profissionais de saúde, e nesse sentido, a Medicina de Dados pode ser um grande aliado para evitar erros médicos”.
Registrar dados de saúde pode parecer uma tarefa simples, mas não é bem assim, especialmente no Brasil, que soma 211 milhões de pessoas com necessidades muito divergentes na rede de saúde pública, como o SUS, que é universal e acessível a todos.
“É interessante de se pensar, inicialmente, na interação ‘profissional de saúde com o paciente’ de uma forma geral, até um contato mais especializado num âmbito hospitalar ou em clínicas. Nós que trabalhamos no SUS costumamos dizer que a prática do dado é o que temos de mais humanizado. Se pensarmos no profissional como um agente humanizado, fica mais fácil visualizar a tecnologia no cuidado. Temos a telemedicina como exemplo, especialmente nesse período de pandemia, já é de senso comum que essa ferramenta otimiza o cuidado”, explica Giovanni.
Alguns projetos destinados que envolvem esses novos dispositivos já têm adesão no Brasil e servem de exemplo para suportes utilitários futuros, como é o caso do Regula+Brasil, que faz parte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS) e foi desenvolvido pelo Hospital Sírio Libânes em 2018, a fim de melhorar os serviços da atenção primária à saúde, diminuindo o tempo de espera para consultas com especialistas. O Regula+ atua de duas formas: usando a tele-saúde para apoiar os médicos presentes nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e orientando a regulação das filas para consultas na atenção secundária à saúde, através de uma coleta e armazenamento de dados.
Stephan Sperling, médico de família e coordenador médico do Regula+Brasil, explicou sobre o projeto: “A ideia do Regula+Brasil é facilitar o trânsito das pessoas que estão na estação primária, nas UBSs, e recebem encaminhamentos para serem cuidadas em ambulatórios de especialidades utilizando a tele-saúde e a medicina de dados. Geralmente, a gente entra nos sistemas de regulação das localidades - a maioria utiliza o sistema do próprio Ministério da Saúde, o Sistema Nacional de Regulação (SisReg). Os médicos entram nesse sistema, avaliam as características físicas e clínicas do paciente descrito ali, listando a prioridade e de qual especialidade médica aquela pessoa precisa. Além disso, registramos as informações de regulação no nosso banco de dados, assim facilita nosso trabalho, porque atendemos inúmeras pessoas e projetos, e nos permite avaliar os CIDs [Classificação Internacional de Doenças] mais recorrentes e o comportamento das localidades”, conta.
Para que profissionais de saúde e pacientes possam usufruir desse sistema unificado e tecnológico, não se pode pensar apenas em softwares de inteligência artificial ou aparelhos avançados. Existe a necessidade de discutir de qual modo será feito o registro dos dados clínicos da população.
Sperling acrescenta que a inovação deve ser uma aliada, visando um bem maior, não focando apenas numa criação desenfreada de novas ferramentas de saúde. Para ele a tecnologia não é uma finalidade, é um vetor para que as coisas aconteçam e é preciso conectar as coisas. "Temos o caso do Recife, onde estamos tentando plataformas para registrar as tele-consultas e pegar as informações para armazenar no prontuário eletrônico, a fim de diminuir a quantidade de sistemas abertos, pois o médico da ponta precisa acessar cerca de 4 sistemas de uma só vez. A ideia de inter-operacionalidade desse projeto é agilizar e simplificar o trabalho”, argumenta.
Ademais, é preciso avaliar os aspectos que envolvem a funcionalidade e praticidade dos sistemas de armazenamento de dados para que profissional atuante, naquele momento, não tenha maiores dificuldades. “Aquela imagem do ‘robozinho’ atendendo [os pacientes] é uma realidade muito distante, pode até acontecer, mas não é o que temos hoje", diz. Uma grande desvantagem é a carga de trabalho que acrescenta ao profissional de saúde, principalmente o profissional de enfermagem. "Ao mesmo tempo que é fácil obter todos esses dados, ainda é necessário ter alguém registrando num formulário digital, deixando de dedicar seu tempo totalmente ao paciente" afirma. Existem estudos que comprovam que um do componente importante que induz [Síndrome de] Burnout no profissional são as obrigações relacionadas à documentação. "Para resolver esse problema tem duas opções: contratar mais profissionais ou automatizar e simplificar mais os softwares", pontua Ary Serpa.
Para que a IA seja capaz de coletar um grande volume de dados, reconhecer padrões e gerar algoritmos que podem tanto auxiliar médicos no atendimento diário, quanto projetar diagnósticos e tratamentos, é preciso ter sistemas informatizados e unificados para substituir as inúmeras fichas de papel por prontuários eletrônicos — o que, além de evitar gastos e erros, economiza tempo nas consultas.
Para que isso se concretize, Sima sugere que essa instalação tem que ser feita de maneira gradual, pois precisa atender desde as metrópoles até as populações indígenas e ribeirinhas. O SUS, por exemplo, é universal. Falar sobre administração de saúde é falar também sobre política, não apenas o dinheiro resolve o problema estrutural do Brasil. É preciso haver uma mobilização social para entender que essa inovação pode ser a solução do problema", prevê. Ele diz que nesse quesito o setor científico vai desenvolver os estudos de impacto social e orçamentário, sobretudo para o debate político e ainda acrescenta: “Em seguida, é importante haver uma comunicação integrada, nesse sentido, jornalistas são essenciais. Os formadores de opinião ganham uma posição de destaque, pois trazem a informação correta à população. Deve existir esse ‘caminhar de mãos dadas’ para que essas tecnologias possam existir efetivamente", defende.
Registros Eletrônicos
Uma pesquisa feita em 2016, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), incluiu 30 países-membros e revelou que, apesar de a maioria investir em registros eletrônicos, poucos conseguiram alcançar um nível de integração que permita extrair dados para pesquisas e estatísticas. A maior parte ainda colhe informações de forma isolada e as analisa separadamente.
Segundo Ary, isso pode tornar-se realidade através de um bom planejamento. Para ele socializar esses dados, torná-los mais democráticos é essencial. "Sem dúvida nenhuma, a tecnologia bem empregada nos dá mais tempo para ficar com o paciente, aumentando a qualidade do atendimento. Um dinheiro bem empregado e profissionais adequados, sendo eles um profissional de Tecnologia da Informação [T.I], um de saúde e um datasets, que são imprescindíveis, afinal, o médico traz a prática, o datasets analisa os dados e o T.I acopla isso aos sistemas”, explica.
Incentivos à pesquisa também são um dos grandes pilares para o desenvolvimento. Serpa explica que a pesquisa é uma das formas mais inteligentes de utilizar dinheiro e atender ao paciente. Ela tem salvado vidas de pessoas que não tinham acesso aos tratamentos como no caso da oncologia. "Muitas coisas no SUS só são feitas por esse incentivo, por parcerias com indústrias ou com governos federais ou estaduais. Sobretudo, também é preciso mudar a visão da população, para que se entenda que pesquisas não servem para fazer ninguém de cobaia ou para mascarar um ato corruptível”, adverte.
Outro desafio enfrentado por essa revolução é o aspecto humanitário do atendimento ao paciente. Profissionais e usuários dos serviços argumentam sobre a suposta falta de humanidade do cuidado igualitário, feito por equipes multiprofissionais. O algoritmo, a inteligência artificial, o deep learning podem acabar dominando o cuidado¹.
Entretanto, os apoiadores da inovação rebatem: “Se falarmos das principais críticas ao acesso dos pacientes aos sistemas de saúde pode haver um pouco de preconceito da nossa parte. Nós já operamos teleconsultas no interior do Amazonas e a grande surpresa foi saber que a comunidade tinha acesso à Internet, mas não tinha sinal de operadoras ou cabos de telefonia. Atendemos crianças que precisavam de neuropediatras, e estavam aguardando há 3 anos na fila. Sem essas tele-consultas não seria possível orientar a família e passar o tratamento correto. Nós testamos e vimos que, apesar dos desafios, foi fácil atingir nosso objetivo”, argumenta Sperling.
Para Sabrina Dalbosco Gadenz, gerente de projetos no Hospital Sírio Libanês dentro do portfólio Regula+Brasil, essa revolução tecnológica já aconteceu em outras profissões: “A transformação digital que a saúde está passando agora, muito por conta da pandemia, nós já vimos antes. Nós não chamamos o banco de tele-banco, por exemplo, e hoje em dia fazemos tudo pelo celular. A medicina não é ‘tele-nada’, é saúde e medicina como qualquer outra coisa. É preciso revisar e avaliar todos esses processos para ser bom para os profissionais e pacientes. Ambos precisam enxergar valor e qualidade no serviço oferecido, é para isso que nós trabalhamos”, explica.
Os diferentes pontos de vista acerca de toda essa modernização acabam enriquecendo o debate, e proporcionando diferentes maneiras de solucionar os problemas que o upgrade na medicina enfrenta, a fim de simplificar e unificar os atendimentos aos pacientes brasileiros. A evolução tecnológica no campo da medicina está em busca de comprovar sua utilidade terapêutica. “Muitas vezes o que tem de mais humanitário num atendimento é o tratamento e o resultado final positivo, como a cura de determinada doença”, finaliza Giovanni Sima.
Glossário:
Big data: Segundo o Oracle Brasil, big data é um conjunto de dados maior e mais complexo, especialmente de novas fontes de dados. Esses conjuntos de dados são tão volumosos que o software tradicional de processamento de dados simplesmente não consegue gerenciá-los.
Machine learning: Segundo IBM Watson, é uma tecnologia onde os computadores têm a capacidade de aprender de acordo com as respostas esperadas por meio associações de diferentes dados, os quais podem ser imagens, números e tudo que essa tecnologia possa identificar.
Data analytics: Processo de analisar informações (dados) com um propósito específico. Isto é, pesquisar e responder perguntas com base em dados e com uma metodologia clara para todos os participantes.
Datasets: Um conjunto de dados ou "dataset" é uma coleção de dados normalmente tabulados.
¹Adaptação da frase do médico e escritor Luiz Vianna Sobrinho, que disse: “Acabou a figura do médico à beira do leito. O algoritmo, a inteligência artificial, o deep learning e…a lógica da gestão acabam tomando à frente do cuidado”.