Dizem que a natureza é distante. Quase imperceptível por entre a selva de pedras chamada São Paulo. Quem procura vai a um parque, a uma avenida mais larga, ao jardinzinho de qualquer dona cuidadora de plantas, mas tem que se contentar com a timidez das pequenas amostras. E tem quem se admire tanto com o ipê colorindo a calçada em plena segunda-feira que decide arrancar uma flor ou duas para levar para casa.
“Não, não pode tirar a flor”, mas as crianças já aprenderam e gostam de ensinar. “A gente tem que regar, tem que cuidar dessa flor. Se a gente arrancar, esse lugar não vai ficar bonito”.
Passos de formiga
Era uma terça-feira. Na saída da estação, havia um shopping daqueles de passar o dia lá dentro e ainda faltar o que ver, o que já entregou que por ali não era. Depois de algumas informações, colhidas ali mesmo na rua repleta de comércio, chegava o ônibus que passaria próximo ao CEU. E que passagem.
Chegando perto, a natureza foi se revelando. Árvores amontoadas numa vegetação densa, verde, viva. “Tem certeza que aqui ainda é São Paulo?”, e não falava somente pelos ônibus interestaduais que circulavam um atrás do outro. Ali parecia um recuo de todo o congestionamento urbano, uma cidadela da natureza diante da megalópole.
Havia um portão como qualquer outro, mas este guardava um tesouro a céu aberto. A entrada pavimentada mais parecia enfeite, demarcando o limite da urbanização no refúgio ambiental. As narinas estranhavam a pureza da recepção. Era um ar que convidava uma respiração profunda, que refrescava os pulmões. Entrar naquele espaço fez nascer a inveja de quem o fazia todos os dias. “O CEU é aberto até nos fins de semana, de feriado, para a comunidade retornar aqui quando quiser”, relata a assessora educacional Simone Aguilera.
Foi no CEU Campo Limpo, em 2021, que se ergueu a minifloresta pioneira do projeto de educação ambiental da ONG formigas-de-embaúba, um programa em parceria com a Prefeitura de São Paulo e com apoio de financiadores de captação privada. A partir da formação de professores e funcionários, instala-se o programa pedagógico para estudantes, que abrange desde o ensino primário até o fundamental.
Nesta etapa, o aprendizado é ao ar livre, acompanhando os processos de reflorestamento com espécies nativas – seguindo o método Miyawaki - e a importância dessa ação no presente e a longo prazo. Para além do clássico experimento do feijão no algodão, essas crianças vivenciam a experiência intrínseca da mão na terra e dos pés descalços na grama natural. “A minifloresta é pensada para ser uma sala de aula livre”, explica Gabriela Arakaki, educadora ambiental e cofundadora da organização.
A embaúba (Cecropia sp.) é uma planta rica em propriedades medicinais. É uma árvore pioneira nos biomas brasileiros, sendo uma das primeiras espécies a ressurgir na sucessão natural. É o símbolo dos primeiros passos de restauração após o desmatamento. Suas folhas combatem a pressão alta, a taquicardia, dentre outros benefícios à saúde humana. O caule e os ramos são ocos, o que permite a presença de formigas (do gênero Azteca) no seu interior, vivendo em uma simbiose que a protege de animais herbívoros ao mesmo tempo que oferece alimento às suas moradoras.
“Nós somos essas formiguinhas, as crianças são essas formiguinhas e estamos em simbiose com essas árvores, com a floresta e com a Mata Atlântica”, aponta Rafael Ribeiro, cofundador da ONG formigas-de-embaúba.
Antagonistas
Mais do que se preocupar com o reflorestamento, é necessário evitar que o mal corte a raiz. Não se pode construir o futuro quando se destrói o presente todos os dias. A comoção pela poda de uma árvore na rua de um bairro cinzento é apenas uma figurante na trama do show de horrores que retratam o desmatamento. Os números são preocupantes e revelam antagonistas.
Segundo levantamento do MapBiomas, em 2020, restava somente 25,8% da cobertura florestal da Mata Atlântica em condições de preservação dentro da área de aplicação da lei (11.428/2006), em contrariedade à ocupação de 69% por uso antrópico – em destaque, as pastagens e a agricultura. No âmbito estadual, o Piauí compreende 89% da cobertura nativa em meio à transição com a Caatinga, enquanto os estados de Goiás (14%), Alagoas (16%), Sergipe, Mato Grosso do Sul e São Paulo (os três apresentam 26%) carecem dessa conservação.
Em 2022, de acordo com o boletim do Sistema de Alertas de Desmatamento (SAD) da Mata Atlântica, o estado de São Paulo apresentou uma área total desmatada três vezes maior que o Parque Ibirapuera. O que assusta é que Sandovalina, o município de maior índice, não possui mais do que 4000 habitantes, segundo o Censo (2022) divulgado pelo IBGE nesta quarta-feira (28).
Legislação ambiental
Dentre as principais estratégias para restaurar o bioma, a regeneração natural consiste em abandonar propositalmente uma área para viabilizar o crescimento da vegetação sem a interferência humana. A técnica é a forma mais econômica no contexto de restauração da Mata Atlântica, mas se prova insuficiente, visto que um terço dessas áreas regeneradas voltam a sofrer desmatamento em até oito anos.
Em tons mais otimistas, existem outras alternativas mais cabíveis à urgência e que correspondem a um dever público em todas as esferas – dos municípios ao Governo Federal. Desde os primórdios da legislação ambiental no Brasil, em 1934, com a decretação do Código das Águas e do primeiro Código Florestal, é notável o comprometimento – no papel – do Estado com essa agenda.
Nesse âmbito, a agenda é apenas o primeiro passo, seguida da elaboração, implementação e, por fim, controlar e monitorar. A dura verdade é que não basta um ou dois passos para vencer a corrida contra o clima. É necessário que o ciclo perdure o quanto a humanidade quiser durar.
“A gente tem um arcabouço de Direito Ambiental que está elaborado, mas continua sendo um desafio da sociedade a implementação do que está garantido nessas legislações fontes de políticas públicas”, revela o professor Rafael Freiria, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas Ambientais (LAPPA/FT) da Unicamp. “A cidade de São Paulo tem políticas extremamente refinadas em termos de elaboração, mas isso não garante bons resultados”.
Em maio deste ano, a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo (Semil) divulgou detalhes sobre o Plano Estadual de Energia 2050 (PEE), que propõe um incentivo para reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa (GEE) a partir de projetos de transição energética que acumulam, ao todo, R$16,8 bilhões em investimentos privados. De acordo com dados recentes dos Balanços Energético Nacional e do Estado de São Paulo, a matriz energética renovável alcança 58,5%, o que supera as marcas do Brasil (47,7%) e do mundo (14,1%).
O Estado consome energia elétrica em larga escala, esbanjando os maiores potenciais de energia solar fotovoltaica e de produção de biogás – este corresponde ao dobro da demanda estadual. Em uma primeira fase, o foco recai sobre cinco eixos estruturantes: meio ambiente, social, infraestrutura, regulação e mercado. Desses, desenvolvem-se até doze áreas de atuação, dentre elas a eficiência energética; a disponibilidade hídrica e múltiplos usos; redes inteligentes; a eletromobilidade; e as mudanças climáticas. Para completar, todos esses processos ainda se concentram nos vetores de descarbonização, descentralização, diversificação e digitalização.
“Esse plano deposita fortemente a esperança, um prognóstico, num maior empoderamento e participação da iniciativa privada e da sociedade civil”, analisa o professor. “Ele reconhece a dificuldade do poder público dar conta dessas agendas todas. A expectativa da comissão que elaborou o PAC 2050 [Plano de Ação Climática do Estado de São Paulo], por sua vez, é de se ter até 70% de redução das emissões em relação aos níveis de hoje, o que seria um ganho importante”.
Vigiar e punir
Neste cânone de preservar e destruir, existe um ciclo de controle que se sustenta na dimensão proativa, relacionada às ações lícitas, e uma agenda reativa, que contrai uma série de penalidades. Mas nem todas as ações são tratadas de maneira uniforme. Afinal, não é o caso de um médico que, para todas as doenças, teria o mesmo remédio.
“Uma solução possível, dentre as várias dentro das políticas públicas, é ‘aproveitar as medidas compensatórias do licenciamento ambiental, que é uma ferramenta de controle de atividades de significativo impacto, em que há declaradamente uma perda de qualidade em prol de outros interesses’”, discorre Freiria, com referências na dissertação Análise da restauração florestal da Mata Atlântica via compensações ambientais no contexto do licenciamento no estado de São Paulo (Unicamp, 2020). “Você pode usar o licenciamento para trazer uma compensação, em termos de recuperação de Mata Atlântica, maior do que aquela área afetada”.
Ou seja, o bom uso do licenciamento ambiental viabiliza uma agenda proativa que configura, por sua vez, melhor direcionamento compensatório a partir da aplicação de benefícios. É o caso dos atores-chave que, por demasiada empatia com a fragilidade do bioma, tornam-se beneficiários de políticas de fomento, como linhas de crédito, isenções tributárias, capacitação, orientação técnica.
Recentemente, o Estado de São Paulo desenvolveu alguns programas regionais de agenda proativa, como o Programa Agro Legal (2020) e o ReflorestaSP (2021). Essas iniciativas se espelham na missão de reduzir os GEE e reforçar os mecanismos de regularização ambiental com fomentos de recursos públicos e privados. Aliado aos objetivos de ONGs como Copaíba e SOS Mata Atlântica, o Estado encontra um caminho aberto e bem-acompanhado para o cumprimento de suas metas ambientais.
Aos antagonistas, entretanto, que ousarem desafiar as normas já decretadas, espera-se uma resposta à altura da Polícia e das demais autoridades competentes. Na construção de um verdadeiro ato de fiscalização e controle, seria ideal promover a coibição do desmatamento ilegal e monitorar as APPs, em colaboração com a continuidade do ciclo de controle.
“O Estado tem que estar sempre calibrando isso”, demarca o professor. “Para quem quer contribuir, políticas de fomento, proatividade. Para quem está querendo atrapalhar essas agendas, políticas de reação, de comando e controle”.