Por Inara Novaes e Guilherme Dias
Às 4h20min da manhã, o sol sequer deu os seus primeiros sinais e os trabalhadores e trabalhadoras da zona oeste de São Paulo já travam a sua primeira batalha diária, disputando um assento entre a avalanche de pessoas que embarca no trem. Minutos depois, aqueles que permanecem em pé, buscam nas paredes uma última oportunidade de se escorar durante a longa e exaustiva viagem. Com o passar das estações, os vagões vão se enchendo de melancolia.
Junto dos passageiros, outros personagens passam a preencher os vagões do trem. Ao fundo, algumas vozes um pouco mais exaltadas começam a ecoar de uma extremidade a outra, anunciando a chegada dos marreteiros. Suas falas irrompem o silêncio e calam os avisos que difamam e criminalizam sua existência. Sempre atentos a qualquer movimentação suspeita, eles dão início às vendas.
Distante da definição encontrada no dicionário de Oxford Language, em que marreteiros são aqueles que marretam brocas para abrir câmaras de mina em pedreiras. Em São Paulo, marreteiros são os ambulantes que procuram nos trens e estações de metrô uma fonte de subsistência. Uma, dentre essas centenas de pessoas, é a jovem Luana Cherry, de 24 anos, que trabalha na linha oito (diamante), cruzando a cidade, de Osasco, até a Julio Prestes, no centro de São Paulo.
A vida de marreteira de Luana começou ainda na infância. Com dez anos ela já circulava de estação em estação, vendendo doces e salgadinhos, para ajudar a família. Desde então, pouco mais de uma década se passou, a jovem já trabalhou "registrada em carteira", mas apenas para serviços temporários - sempre que o contrato encerrava, era para os trens que ela retornava - o seu último emprego, entretanto, foi em 2018, pouco antes de engravidar e tornar-se mãe do Guilherme Ricardo, que nasceu em meio à pandemia e acaba de completar um aninho.
Anteriormente, a jovem acordava às 6h00min, às 8h00min já embarcava no primeiro trem e o dia só terminava por volta das 21h00min, com a sacola de doces e salgadinhos completamente vazia; mas, hoje, tudo tornou-se mais difícil, os vagões estão sempre escoltados e Luana se viu obrigada a decorar o horário de almoço e a troca de plantão dos guardas, às 19 horas, para conseguir trabalhar.
Então, todos os dias, ela acorda, toma café da manhã e às 11h40min espera uma oportunidade de pegar o primeiro trem livre de escolta; às 14h00min, a tranquilidade se encerra e os seguranças retornam do almoço e é somente no intervalo entre às 19h00min e às 20h00min, que ela encontra outro trem sossegado para trabalhar. É assim desde o início da pandemia: são raros os dias que se encerram de sacola vazia.
Luana, como todos os marreteiros, precisa se desdobrar para não cruzar o caminho dos seguranças, mas quando o assunto são os passageiros, ela enfrenta alguns desafios específicos por ser mulher: muitos a julgam, a xingam e se atrevem a assediá-la e tocá-la sem permissão, acham que o seu corpo é tão público quanto o chão do transporte que pisam. Ela diz que no começo, quando era apenas uma garota de dez anos, era muito difícil, pois não sabia lidar muito bem com isso, mas com o passar dos anos foi apenas se adaptando.
A poucos quilômetros de Luana, no município de Jandira, mora o marreteiro Diogo Marciano, de 26 anos. Ele começou a trabalhar no trem a convite de um amigo, porque estava desempregado, e desde então já se passaram três anos. Sua rotina começa às 5h00min da manhã e só termina às 18h00min, para, no fim do mês, trabalhando 12h00min todos os dias, conseguir faturar pouco mais de um salário mínimo com a venda de aparelhos eletrônicos nas estações de metrô.
Embora Diogo diga que é tímido e não sabe se expressar muito bem, quando é perguntado sobre o relacionamento com os seguranças contratados pela CPTM, ele não exita em dizer que essa é definitivamente uma das maiores dificuldades em ser marreteiro: lidar com a hostilidade dos "guardinhas" que, muitas vezes, oprimem e, não satisfeitos, ainda agridem os ambulantes. Na memória, ele resgata uma violência que sofreu anos atrás, quando foi surpreendido por seguranças à paisana.
Já sofri várias opressões e vivenciei muitos colegas sofrendo opressão. Na maioria das vezes acontece assim, porque eles são pagos para isso, para fazer a fiscalização da estação, tal, e também está na lei que não pode vender nos trens e estações. Então, eles [os guardas] precisam pegar no flagrante, ou seja, se ele pegou a pessoa ali vendendo, ele vai fazer o trabalho ali, naquele momento.
Mas, às vezes, a maioria leva para o pessoal, por exemplo, eu moro em Jandira, eu pego a passagem de Jandira com minha mercadoria guardada na bolsa, de imediato eu não vou trabalhar, vou ver como que está o movimento, eu posso entrar no trem e não trabalhar, fica de canto, de boa; porém, como os guardas conhecem a gente e a gente conhece eles, eles não dão tempo nem da gente começar a trabalhar. Isso não é flagra, eu vejo isso como pessoal. Só de olhar para a pessoa, ele assume que aquela pessoa é marreteira. Muitos não aguentam isso. Esse tipo de trabalho é errado, o trabalho deles é pegar em flagrante, mas quanto mais se discute, mais se cobra, mas oprimido nós somos.
Comigo, aconteceu quando eu estava trabalhando e, até aí tudo bem, os guardas correram atrás de mim e eu consegui escapar, corri para a linha e acabei fugindo. Nesse dia, eu perdi minha maquininha e eles pegaram minha maquininha e mandaram eu ir buscar, porém eu não podia buscar para não perder minha mercadoria. Então, deixei minha maquininha para lá. Eu cometi o erro de xingar eles e quando eu estava fora da estação tinham dois guardas à paisana, fora do posto deles, eles me pegaram a força e me levaram de volta para a estação e lá dentro, foi na estação Presidente Altino, eles me levaram para o pátio e me bateram e eu não pude fazer nada.
Imagem de capa: Governo do estado de São Paulo
Edição: Inara