200 anos de uma suposta independência se passaram. Isso porque esse momento histórico, muitas vezes visto como símbolo de mudança, autonomia e liberdade, não mudou os trajetos de um país onde ainda reina o preconceito, o feminicídio, a opressão de povos nativos, leis patriarcais, a fome e a dependência externa - o que soa o mais irônico possível.
O dia que marcou a independência do país fez nascer um Brasil que dependia da escravidão para manter-se economicamente. E mantêm, até hoje, pretos e pretas dependentes de reparações históricas irreparáveis. Há mais tempo de escravidão na história do Brasil do que de Independência proclamada. E isso diz muito.
Aliás, se a anunciação de D. Pedro foi dada às margens do Rio Ipiranga, ela ainda não desembocou nos rios amazônicos, nos ouvidos de tantos povos indígenas.
Enquanto isso, mais uma vez, militares e milícias celebram o que parece ser um dia imaginário, gritando que nossa bandeira nunca será vermelha, enquanto tingem ruas e comunidades do vermelho mais gritante. De um sangue tão vermelho e antigo como tintura de Pau-brasil. Um vermelhão gritante de dor, preconceito e injustiça, que ecoa das gargantas de mães, pais e amigos, mas não alto o suficiente para o mundo ouvir.
Às margens dos direitos
No evento “Bicentenário da Independência do Brasil: Soberania, Democracia e Decolonialidade”, realizado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o professor e historiador Alberto Luiz Scheneider explica que a vinda da Família real portuguesa provoca a abertura dos portos, um primeiro passo do processo de independência. No entanto, com o desenvolvimento do comércio agora em maior demanda, mais mão de obra foi necessária. Ou seja, mais africanos foram escravizados.
Até na arte é explícito aqueles que ficaram às margens - e não só do Rio Ipiranga. O povo preto não poderia fazer parte desse momento de independência para além de seus serviços forçados. Não havia independência para a pele preta, nem na arte nem na vida real.
E isso alcança também os povos indígenas: “O silêncio continua nas escolas, nas universidades, nas ruas, nas pesquisas. Muitos deles diziam que não há espaço para os indígenas nessa sociedade, que não são brasileiros nem cidadãos e que nunca serão”, como denuncia Edson Kayapó, doutor em Educação Histórica, Política e Sociedade.
Mesmo assim, ainda que ditos como “’povos que seriam extintos pela força de sua incapacidade física, biológica e cultural de acompanhar o progresso nacional’, tantos povos resistem e continuarão resistindo”, garante Kayapó.
Outro grupo por debaixo dos panos – e planos – da independência são as mulheres. Afinal, que independência é essa em que somos livres para trabalhar ganhando menos, apanhando em casa e com medo do estupro?
Ruth Manus, escritora e advogada, atenta também para como a exploração feminina repassada a mulheres mais vulneráveis ainda é um equívoco de independência feminina: “Não adianta falar que a mulher privilegiada não tem dupla jornada se tem outra mulher no teu lugar trabalhando em casa, mal paga, sem registro. Isso não é emancipação feminina, é simplesmente exploração de uma mulher menos privilegiada no seu lugar”.
"Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil"
O hino da independência é quem nos diz. No entanto, não se morre pelo Brasil. Se morre por causa do Brasil, suas instituições assassinas e sua elite opressora.
“Vossos peitos, vossos braços, são muralhas do Brasil”. Essas muralhas brasileiras que o hino vos fala estão mais para alvos. Estes nossos peitos são muralhas derrubadas com balas perdidas – ou muito bem achadas. As muralhas que caem, fortalecem as da desigualdade, que resistem e se edificam.
Se “Zombou deles, o Brasil”, zombaram dos brasileiros quando decidiriam que 7 de setembro é sinônimo de liberdade.
E se, com tudo isso, ainda cantam o hino da independência, cantam para abafar os gritos e choros que tocam ao fundo, ao ritmo das metralhadoras que disparam e sob o comando da orquestra policial da morte. Se for branco, homem e cis, você está no camarote. Se for mulher, preto ou indígena, você tem lugar reservado. E assim, Dom Pedro mal imaginava que havia dado início a um novo show de horrores - nem tão novo assim.
E como todo brasileiro canta, “o show tem que continuar”. Mas dessa vez, gostaríamos que fechassem as cortinas, punissem os diretores e atores principais e acendessem as luzes do iluminismo democrático mais uma vez.