Contemporâneo significa “que ou quem é do mesmo tempo ou da mesma época”, de acordo com o Dicionário Priberam de língua portuguesa. Quando falamos em literatura, o período contemporâneo conta com produções datadas do final do século 20 até metade do século 21. Do Trovadorismo ao Modernismo, as peculiaridades de cada momento da história literária já podem ser definidas, mas o que hoje chamamos de literatura contemporânea, bem como suas principais formas, ainda está sendo desvendado pelos estudiosos.
Ieda Magri, além de autora no cenário contemporâneo, é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora de Teoria da Literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sua pesquisa atual diz respeito à inserção da literatura brasileira e latino-americana no cenário contemporâneo.
A professora Luciene Almeida de Azevedo leciona teoria literária na Universidade Federal da Bahia e sua pesquisa aborda as “formas contemporâneas do romance, autoficção e o campo literário”. Acerca desse contexto literário, Ieda e Luciene compartilham suas percepções sobre o assunto em entrevistas individuais.
Para Ieda, hoje a produção literária pode ser classificada em diferentes linhas de força. “A literatura que está interessada no modo de fazer e na discussão das possibilidades da literatura em conversa com os escritores que vieram antes”, aponta como uma das características. O rompimento entre gêneros também seria outra particularidade de nossa época. Segundo Luciene: “Há uma tolerância e uma exploração maior do hibridismo na forma de composição das obras. Muitas narrativas assumem uma dicção ensaística, flertam com a anotação diarística, incorporam documentos dentro das próprias obras”. Em concordância, Ieda cita como exemplo livros de Paloma Vidal que, segundo ela, “ficam entre o ensaio e o poema, entre o ensaio e o romance”.
Em sua fala, Ieda aponta para a crescente representação de identidades pouco retratadas até então, com narrativas que “trazem à tona um mundo pouco glamouroso, interiorano, roceiro” e cita como exemplo o livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que ganhou destaque no meio literário justamente por sua narrativa que trata de questões sociais.
“Há também uma poesia que beira a oralidade e a denúncia da violência contra mulher. Há escritores com projetos literários bem delineados e investindo forte numa linguagem nada simplificada, quase barroca. Tem uma literatura que investe no humor escrachado. Há vários escritores tentando entender o Brasil atual e há também um coro que parece vir de todas as partes do país, descentrando um pouco a produção”, indicou Ieda como outros atributos da literatura do século 21.
Já para Luciene, há uma tendência mais forte para a não ficção. Para ela, existe “um flerte de muitas obras com a tensão entre a imaginação e o relato em si”. “Essa exploração do não ficcional está relacionada à emergência de outras vozes”, ela afirma.
Ainda que cada momento da literatura tenha suas características, ambas as entrevistadas concordaram que o realismo é uma particularidade de nossa literatura que atravessa o tempo e se mantém presente ainda hoje. “Nosso sistema literário se reconhece em um tipo de literatura-verdade. Isso continua hoje com o investimento de muitas obras em discussões das pautas políticas e sociais”, comenta Luciene.
Assim como o Romantismo tem José de Alencar e o Realismo, Machado de Assis, cada período da literatura conta com seus representantes. Por mais arriscado que seja identificar representantes de um tempo que ainda está em curso, Ieda Magri e Luciene de Azevedo elencam uma série de autores cujas obras podem ser consideradas as principais das últimas três décadas. Entre os escritores citados por cada uma, nomes como Bernardo Carvalho, Carlito Azevedo, Luiz Ruffato, Marília Garcia e Verônica Stigger aparecem em comum em suas listas.
Ieda compartilhou trechos de seu artigo ainda inédito sobre a relação da literatura brasileira com o exterior. No artigo ela reflete sobre os motivos da baixa divulgação internacional da produção editorial do país. Ela aponta a linguagem como um dos motivos. “Acho que o pouco interesse na literatura brasileira em termos de mercado passa pelo pouco prestígio da língua portuguesa… o Brasil busca ainda uma linguagem própria para a inserção em outros mercados”, comenta. Em sequência, completa: “Essa linguagem-Brasil não passa mais por uma questão identitária, os escritores não precisam mais pensar sobre a natureza do país ou de sua língua, o que é libertador e talvez seja possível hoje por causa de nossa história pregressa”. Para Ieda não é possível pensar em apenas uma única linguagem de literatura nacional e fica claro que na circulação da literatura brasileira na Europa esse não é o caso. “Circula tanto uma literatura mais cosmopolita, ou mesmo com a literatura moderna europeia, quanto a mais localizada territorialmente, a que joga com o Brasil-fetiche (o do carnaval, da beleza natural, da bossa-nova ou do futebol) ou com o Brasil-problema (o da miséria, das favelas, da violência urbana). Nesse sentido há muitos brasis e há várias linguagens Brasil, uma literatura muito diversa em temas e em formas.”
A respeito das perspectivas para o futuro da literatura brasileira, Ieda diz que tudo é possível, mas que falta “investimento institucional na internacionalização de nossa literatura”. Em seu artigo, ela também aborda essa questão e escreve: “A circulação de Clarice Lispector ou de livros mais pontuais como Torto arado, de Itamar Vieira Junior ou, antes, Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera, vão sedimentando essas linguagens Brasil: dizendo o que é a literatura brasileira hoje”.