“O que vemos é que pouquíssimos hospitais (menos de 60 em todo o país, provavelmente) oferecem o aborto legal para os casos de estupro”, afirma a ginecologista e obstetra Helena Paro. No entanto, em 2013, foi promulgada a “lei do minuto seguinte”, que obriga todos os hospitais do SUS a prestarem atendimento integral, multiprofissional e emergencial a vítimas de violência sexual no Brasil (Lei 12.845/2013). Dessa forma, o aborto – que é legalizado em casos de estupro, riscos de morte à mulher e anencefacilia fetal – continua sendo de difícil acesso no país. Os dados comprovam esta dificuldade: segundo pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), menos de 4% dos municípios brasileiros realizam o procedimento, resultando na sua falta de seu acesso por quase 60% das mulheres do país.
De acordo com Helena, outra razão pela qual não se tem oferta ao aborto legal é o fato de "não conseguirmos mudar a realidade complexa da violência baseada em gênero apenas com leis”. Na verdade, a raiz desse problema está na existência de uma sociedade misógina e patriarcal, em que é recorrente a banalização da violência sofrida pela mulher e a culpabilização da vítima pelo o que viveu. “Muitas mulheres não denunciam as agressões sofridas porque sabem que diversas vezes serão novamente vítimas de uma violência institucional nesses espaços que deveriam ser de acolhimento (serviços de saúde, de segurança pública e de justiça)”, afirma a médica.
Ligado a isso, a obstetra conta que o direito da mulher à interrupção de sua gravidez é muitas vezes negligenciado pelos próprios médicos, e que isso a motivou a fazer parte do atendimento à vítimas de violência sexual: “ficou claro para mim que, diante da escassez criminosa (justificada por ‘objeção de consciência’) de médicos que assistem mulheres em situação de aborto por gravidez decorrente de estupro, eu tinha o dever de lutar pela melhoria da qualidade do cuidado dirigido a essas meninas e mulheres.” Esta negligência na área médica está diretamente ligada ao sexismo e o patriarcalismo enraizados e institucionalizados na sociedade.
É nesse sentido que traços culturais muito enraizados, como a objetificação, hipersexualização e assédios verbais e físicos sofridos desde a infância pelas mulheres trazem a ideia machista de que todos, menos a própria mulher, têm propriedade sobre o corpo dela. Dessa forma, desencadeando a opinião comum de que abortar seria um absurdo, pensamento vindo muitas vezes de pessoas que nunca passaram por uma situação em que sentiram a necessidade de abortar.
Além disso, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 73 milhões de abortos são realizados no mundo todo ano, sendo estimado que 1 milhão destes são no Brasil – menos de 2000 dentro de condições legais. O resultado: a cada dois dias, calcula-se a morte de uma mulher em função de um procedimento mal feito. Esses dados colocam em evidência o impacto negativo da criminalização da prática sobre a saúde das mulheres e a importância de sua descriminalização.
Com estas estatísticas em vista, é fato que criminalizar o aborto não reduz em hipótese alguma suas taxas, mas empurra as mulheres às clínicas clandestinas, colocando mais vidas em risco. Afinal, como explica o ginecologista Jefferson Ferreira em entrevista para o jornal Brasil de Fato: “o que faz a mulher buscar não é se a lei permite ou proíbe; o processo para evitar uma gravidez indesejada vai muito além da lei. Ele passa pelo planejamento reprodutivo de alta qualidade, pela redução da violência de gênero, uma educação sexista… Enfim, passa por um monte de coisas que não necessariamente têm a ver com a proibição.”