Latindo por socorro - a situação dos cães abandonados na pandemia

Abrigo no interior de São Paulo vê abandonos crescerem e adoções diminuírem, gerando dificuldades de funcionamento
por
Beatriz Aguiar e Sara de Oliveira
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14/05/2021 - 12h

Por Sara de Oliveira e Beatriz Aguiar

 

Depois de um sábado gasto na tentativa de construir um gatil (espaço para gatos) sem muito sucesso para a gata que mora no canil ela não gostou Rita e Regina se preparam para a entrevista online. Com o celular na vertical, Rita segurava o aparelho e  o apontava para Regina. Iniciaram pedindo desculpas pelo atraso e por estarem descabeladas. No “corre” desde cedo, não tinham com o que se preocupar. “Nem almoçamos ainda. Só tomamos água e ‘tubaína'”; já se passavam das 17h do dia 27 de março. As protetoras de animais estão trabalhando como nunca na pandemia. Há uma alta nos abandonos e elas crêem que muitas famílias não queiram cuidar dos animais de parentes vitimados pela doença.

Rita de Cássia e Regina Cardoso são duas ativistas da causa animal. Ambas trabalham na área da saúde. Rita é professora de enfermagem na UNIFACAMP - Universidade Faculdade de Campo Limpo Paulista e enfermeira. Regina é técnica de enfermagem da Prefeitura. Ambas trabalham em Campo Limpo Paulista, a 62 km da capital. A cidade tem 85.541 habitantes espalhados nos mais de 80 quilômetros quadrados, segundo o IBGE 2020. Uma cidade relativamente pequena. Não tem grandes comércios, não tem shopping, não tem McDonalds, mas tem a Krupp, a metalurgia responsável por trazer um grande movimento econômico na cidade desde os anos 1960, quando se instalou na cidade.

Alaska
Conheça Alaska

 Rita e Regina estão resgatando animais há mais de vinte anos. São inúmeras histórias, em sua maioria tristes. O “Abrigo Amigo Fiel” (não se confunda: é o amarelo e marrom nas redes sociais) tem uma capacidade para 120 cães, mas, no momento, estão com 200. Elas fazem os resgates pelas ruas da cidade. Os animais são em sua maioria idosos e vira-latas. “Você deixa uma cachorra cega no meio da pista pra que? Outro dia eu parei meu carro no acostamento, liguei o pisca alerta, desci e resgatei a cachorra”, disse Regina totalmente indignada com a falta de amor do ser humano para com os animais.

Desde o começo da pandemia foram resgatados mais de quarenta cães, com uma média de dois a três por semana. Na maior parte dos casos, os cães chegam doentes e machucados por maus tratos. Durante a semana do dia 22 de março de 2021, foram resgatados cinco cachorros, um com priapismo, uma ereção persistente do pênis, frequentemente dolorosa que dura mais de quatro horas, na ausência de estímulo ou desejo sexual. É uma patologia pouco frequente em cães, segundo o artigo científico do Pubvet. Outro com tumor nas costas está internado. Além de mais três abandonados, todos machucados e desnutridos.

Em áudio, as protetoras contam as histórias de alguns animais que as marcaram, sejam pelos maus tratos que sofreram, sejam pela doçura para enfrentar seus obstáculos:

 

Segundo a Ampara Animal, uma associação de mulheres que ajuda abrigos e protetores independentes, aumentou em 70% o abandono de animais no Brasil durante a pandemia. Embora Rita e Regina não tenham dados específicos para comparar o número de cães acolhidos antes e depois da pandemia, seus relatos dão uma ideia. “Se nós pegarmos as ninhadas do ano passado [2020], eu posso te falar que resgatamos pelo menos uns 50, 60 cachorros e doamos uma média de 20 cães. O resto ficou”.

Para Júlia Fink, psicóloga clínica e professora de Psicologia da UNIP, houve um aumento da ansiedade relacionado às circunstâncias incontroláveis da pandemia. Esse aumento combinado à visão social de animais como objetos para o prazer humano, ao invés de seres vivos com sentimentos, pode estar culminando na expansão do abandono. “É uma experiência nova [a pandemia], é um estado de exceção. As pessoas estão num senso de urgência para tomar decisões que subtraiam de suas vidas tudo que possa estar gerando um peso. Seja um peso financeiro, emocional…”. Maus-tratos também podem estar relacionados ao aumento dos transtornos mentais durante o período. Algumas condições, como a depressão, podem levar a quadros limitantes, quando a pessoa não consegue cuidar de si nem dos outros, como animais domésticos. “Se a pessoa está num episódio desses de depressão, o ideal seria que houvesse uma rede de apoio que pudesse cuidar da pessoa e do animal (...) Agora, existem pessoas que sentem prazer em infligir dor a animais. Nesses casos, não sei se a pandemia faz tanta diferença”. 

Regina e Nescau
Regina e Nescau

Como o acolhimento dos cães é feito a partir do resgate nas ruas, Rita e Regina não sabem ao certo o histórico do animal. Porém, Rita acredita que esses animais estão sendo abandonados pelos parentes dos donos que faleceram por conta da COVID-19: “Eles têm hábitos domiciliares. Não são cachorros que foram criados na rua. A gente percebe que quando o animal é criado na rua ele tem um outro comportamento”. Cachorros criados em lares gostam de ficar perto das pessoas, obedecer, são aparentemente calmos e não têm medo de contato humano; ou, pelo contrário, estão completamente assustados com a situação. A maioria dos cães abandonados são vira latas ou das raças poodles, lhasas e chitsons. Cachorros de raça são abandonados com mais frequência quando envelhecem.

Rita com Nescau e Sherá
Rita, Nescau e Sherá

A dupla está junta há mais de 11 anos. Antes de se encontrarem, já trabalhavam no resgate de animais. Elas reuniram os cães resgatados de cada e montaram o “Abrigo Amigo Fiel”. A rotina é dura: Rita trabalha das 7h às 22h como professora e Regina das 7h às 16h na UBS. Os finais de semana são exclusivos para resolver questões do abrigo. 

A pandemia afetou muito também as adoções. Tiveram um começo promissor, com muitas pessoas adotando por se sentirem sozinhas em suas casas nos primeiros meses da pandemia. Cachorros idosos, que não costumam ser a preferência, estavam sendo selecionados. Uma pesquisa de julho de 2020 da ONG União Internacional Protetora dos Animais corrobora sua fala: a procura por cães e gatos cresceu 400% durante a quarentena em São Paulo. 

Houve um estímulo da mídia para a adoção de animais durante esse último ano, através de matérias que mostravam os efeitos positivos na saúde mental. Fink concorda que a adoção pode ser boa, desde que seja feita de forma responsável. “A interação com animais pode ser positiva [para a saúde mental], mas ela tenderá a ser positiva quanto mais responsável ela for. Adotar um animal é maravilhoso, adotar um animal de forma irresponsável é complicado. Ele é um ser vivo e merece carinho e condições dignas de existência”. A adoção, como ela mesmo frisa, é uma escolha de médio a longo prazo, uma vez que animais domésticos vivem anos, até mais de uma década. Não pode ser pautada por um desejo imediato produzido durante esse período de confinamento. A imprudência de quem adota, aliada a alguns processos de adoção igualmente descuidados, pode estar levando a um fenômeno observado no Abrigo Amigo Fiel: a devolução de cães por adotantes.

"Ninguém nos procura mais e quem procura devolve”, lamenta Rita. “Devolve porque faz xixi, devolve porque faz cocô; ainda bem né”, ironiza Regina. “Se não tem vaga no coração [para o cachorro], não aguenta mesmo e devolve”.

Zeus
Zeus, Pitbull

As duas protetoras de animais são cuidadosas na adoção. É feita uma entrevista com o interessado, que, caso aprovado diante dos requisitos estipulados, pode adotar. Alguns dos requisitos são: a casa ser fechada ou murada; o cão possuir um espaço próprio, seja dentro ou fora de casa; os interessados possuírem condições materiais de manterem o cachorro. Ambas ainda se interessam pela profissão dos requerentes e por animais de estimação que tenham ou tiveram. Afirmam que se o interessado deseja o cão para presente, rejeitam. Os aprovados são acompanhados semanalmente durante o primeiro mês; na primeira semana o contato é diário. Quando ambas sentem que o animal está seguro em seu novo lar, as visitas são espaçadas. 

Por conta da superlotação, as amigas pedem ajuda. O abrigo funciona a partir de doações. Felizmente, possuem amigos que ajudam fielmente o projeto, mas na atual situação, não está sendo o suficiente. Além disso, como os animais chegam doentes, alguns com câncer, machucados, desnutridos, cada um tem uma demanda diferente. Como não são veterinárias, precisam pagar pelo serviço. Já chegaram a gastar R$31.000 reais, fora a medicação, num único ano. Se tudo está bem, elas gastam em média R$8.900 por mês, já contando com as doações. 

 

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Quem quiser ajudar o abrigo pode entrar em contato: 

Facebook: Abrigo Amigo Fiel

Instagram: @AbrigoAmigoFiel

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