Provavelmente, você já deve ter escutado o bordão “O Brasil prende muito e prende mal” e embora existam hoje mais de 900 mil pessoas encarceradas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um dos principais ecos da sociedade é a impunidade vivida. Com efeito dessa contradição, surgem as questões: em qual parte então a justiça criminal brasileira está falhando? Será que prender e punir é a única forma de se fazer justiça?
A princípio, o cenário que se evidencia no sistema criminal é de ineficiência e precariedade. De acordo com o conselheiro do CNJ, Mauro Martins, cerca de 45% dos presos estão sem uma condenação definitiva e por isso, cumprem maior tempo de pena necessária, sendo 67% dessa população formada por pessoas negras. Ademais, segundo o Departamento Penitenciário Nacional, das 1.381 unidades prisionais, 997 têm mais de 100% da capacidade ocupada e outras 276 estão com ocupação superior a 200%, ou seja, também existe a superlotação dos presídios. Soma-se a isso a ausência de práticas que busquem estimular o infrator ao desvencilhamento da vida do crime e a sua inserção como cidadão no convívio social. Sob essa perspectiva, percebe-se que o sistema penitenciário atual está mais para um mecanismo de atraso e perpetuação de ciclos na criminalidade, uma vez que punir se torna diferente de responsabilizar e conscientizar o ofensor do crime cometido. Mas será que existe uma outra forma de se lidar com os conflitos, trazendo reparação para a vítima e diminuição dos apenados em uma lógica cada vez menos coerente?
Uma alternativa em construção
A Justiça Restaurativa surgiu na Nova Zelândia em 1970, tendo como inspiração a forma como os aborígenes Maoris, povos nativos do país, solucionam seus conflitos de litígio. A prática chega ao Brasil na década de noventa e é oficialmente iniciada em 2005, com o projeto "Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”. Em entrevista à Agência Maurício Tragtenberg, a cientista social e mestre criminal Raffaela Palloma, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, explica que a Justiça Restaurativa não é um conceito fechado, uma vez que é formada por um conjunto de práticas, valores e princípios. “Alguns vão dizer que é um modelo de Justiça, uma forma de responder aos conflitos [...] (sendo) atrelada a possibilidade da gente responsabilizar a pessoa que praticou a conduta criminosa de outra forma, não dando uma resposta punitiva, mas dando uma resposta, digamos, mais positiva”, completa Palloma.
No Brasil a Justiça Restaurativa segue a metodologia do Ciclos Restaurativos, que seria um roda de diálogo com as pessoas envolvidas no conflito, tanto o ofensor, quanto a vítima devem estar ali de forma voluntária. A partir dessas conversas são feitos pequenos acordos, que buscam reparar os danos causados a vítima. Por consequência, a prática encontra um meio para responsabilizar o infrator, criando um ambiente em que ele encare as consequências do seu crime e perceba sua nocividade.
Em contraste, a prática dentro do país ganhou tons próprios, a advogada nos conta que no Brasil há uma tendência dos processos de justiça restaurativa serem mais voltados aos ofensores, esse fato decorre também por parte das vítimas possuírem desconhecimento e receio sobre o que é a prática. Outro ponto observado, é a centralidade do judiciário na condução dos processos, visto que as primeiras experiências surgem em projetos pilotos implementados pelo sistema. Diferentemente, em outros países são organizações não governamentais que cuidam dos casos, recorrendo apenas ao poder judiciário se necessário. Um dos possíveis riscos para Justiça Restaurativa, em decorrência dessa centralidade, é de que seu diferencial seja apagado, podendo ser cooptado e contaminado pela lógica do sistema tradicional.
A forma de reparação pode ser diferente para cada vítima
Em relato, a cientista Palloma nos conta sobre uma história muito marcante, em que um adolescente havia matado intencionalmente seu amigo. A família da vítima resolveu tratar o caso pela Justiça Restaurativa, dentro do processo a mãe sempre dizia que sentia muita falta do seu filho. Conforme os ciclos foram feitos, um dos acordos era que o adolescente, amigo do filho dela, iria almoçar com ela todos os sábados, uma vez que ela queria companhia e queria que isso acontecesse. O desfecho desse caso, assim como outros, podem espantar as pessoas dentro daquilo que se espera acontecer, mas para essa mãe esse acordo trazia em alguma medida reparação a morte do seu filho. "São coisas que a gente não explica, mas que foi importante para ela" afirma Palloma.
Dessa forma, é importante pensar que o conflito muitas vezes não possui uma natureza única, por isso, não respondem a uma mesma resposta. Em entrevista, a mediadora e advogada Carla Maria Zamith, doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, explicou que “a noção de que conflito não é um pensamento linear de causa e efeito", uma vez que não decorre de um único motivo. Quando, por exemplo, há uma “situação de conflito que acontece numa escola, este conflito não está descolado da estrutura da escola e das pessoas que chegam ali [...] o que a prática olha não é qual lei foi infringida, qual a regra que foi infligida, mas qual a necessidade que não está e não foi atendida que deu causa para o surgimento daquela situação” elucida a mediadora.
A doutora também faz a diferenciação entre mediação e justiça restaurativa, embora ambas possuam o mesmo “princípio do não saber”, a Justiça Restaurativa conta com uma rede de apoio e sustentação de grande porte, enquanto a mediação não demanda desse fator, necessariamente. Uma das experiências trazidas pela mediadora Carla era de uma casal que estava se separando e “estava em um grau de desrespeito e discussões que não conseguiam se falar, tornando a convivência em casa impossível”. A partir disso, foram sendo feitos pequenos acordos entre os dois no processo de mediação, com esse exercício de comunicação, foi possível se transformar esse momento, ao ponto deles conseguirem se escutar novamente.
Em síntese, a Justiça Restaurativa não propõe uma solução única para os problemas da justiça criminal e muito menos diz que ambas não podem caminhar juntas, mas tenta construir a ideia de que o conflito está dentro de um todo e isso não deve ser ignorado. E a partir desse entendimento, traz a reflexão de que o diálogo e a escuta podem ser mais eficientes no processo de responsabilização do infrator e na não perpetuação de novos crimes.