A digitalização do mundo pode ser explicada por uma sequência de fatores que conectam a comunicação no meio virtual com as formas democráticas impostas pelos algoritmos da era digital. Em seu livro Infocracia: digitalização e a crise da democracia, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han explica a transformação do “regime disciplinar”, que tratava-se da exploração de corpos e energias e assume uma forma maquinal, em “regime de informação”, na qual o controle incide sobre informações e dados. Segundo Han, o poder não é mais decorrente dos meios de produção, mas do acesso à informação: “acesso a dados utilizados para vigilância, controle e prognóstico de comportamento psicopolíticos”.
O smartphone é a principal arma da dominação do regime de informação, ocultada na medida em que se funde com o cotidiano. Simples ações do dia a dia como acionar um comando para assistente virtual, acessar um aplicativo inteligente ou até mesmo fazer uma publicação em uma mídia social são exemplos que evidenciam a existência de um regime dominante exercido pelo capitalismo da informação. A criação do like, por exemplo, nas redes sociais é justamente uma técnica do poder do regime de informação. Essa sensação de receber curtidas em publicações funcionam como “estímulos positivos” controladores de comportamento que exploram a liberdade dos usuários. Quem nunca viu uma pessoa que faz literalmente de tudo, muitas vezes de forma inconsciente, para conseguir milhares de likes nas redes sociais? Para Han, “no regime da informação, ser livre não significa agir, mas clicar, curtir e postar”.
E nessa onda de estímulos positivos que entra o papel dos influenciadores digitais nos dias de hoje. Seja no YouTube ou Instagram, seja influenciador fitness, de beleza ou de viagem, é feita uma auto-encenação com produtos enviados por marcas com o intuito de formar um exército de followers, os seguidores, que passam a se comportar de acordo com uma vida baseada em um cotidiano encenado. Byung-Chul Han entende que os influencers são adorados como modelos. Os produtos de consumo se transformam em objetos de autorrealização e a identidade funciona como uma mercadoria. Quem nunca comprou ou chegou perto de comprar um produto simplesmente por status? A Apple é um exemplo disso. Nos últimos anos, as próprias crianças cresceram com a ideia de que ter um iPhone era a solução para popularidade e aceitação em uma sociedade capitalista. Ter um dispositivo com a famosa maçã se transformou em um dos principais símbolos de status do mundo atual. Para o autor de “Infocracia”, toda mudança decisiva de mídia produz um novo regime, já que “mídia é dominação”.
Além disso, há também o entendimento de que o mundo se tornou uma sociedade paliativa, em que desejos e necessidades são automaticamente satisfeitos. Nesta realidade, os novos meios de dominação são baseados no entretenimento, no divertimento e, sem sombra de dúvidas, no consumo. Tendo o smartphone como meio de submissão, as pessoas não só consomem, como também produzem informações, rendendo-se à chamada embriaguez de comunicação. Han acredita que na era das mídias digitais, “a esfera pública discursiva não é ameaçada por formatos de entretenimento nas mídias de massa, não pelo infoentretenimento, mas sobretudo pela propagação e proliferação viral de informações, a saber, pela infodemia”.
Exatamente nesta realidade de “guerra de informações”, a verdade acaba se desintegrando em meio à instabilidade temporal, o curto-prazo em que as informações circulam -- o que não traz nenhum benefício à democracia. A racionalidade é outro ponto importante. Na sociedade da informação, não há tempo para a ação racional, logo, informações com maior potencial de estimular acabam sobressaindo diante das que apresentam melhores argumentos. Atualmente, o X, antigo Twitter, é a principal rede social em que as fake news, notícias falsas, recebem mais atenção e engajamento do que artigos fundamentados. Quem nunca caiu em uma fake news pelo alto número de curtidas e compartilhamentos de uma publicação?
A própria acessibilidade simples à internet atua como um facilitador da propagação de notícias falsas, visto que, com pouco esforço e sem custos, praticamente qualquer pessoa pode criar uma conta no X ou um canal no YouTube -- diferentemente da era das mídias de massa, em que para produzir uma informação eram necessários diversos recursos e, consequentemente, maiores investimentos. O filósofo também acredita que a comunicação baseada nos famosos memes como contaminação viral “dificulta o discurso racional ao mobilizar, mais do que nada, afetos”. Isso pode ser explicado pela preferência dos usuários por conteúdos visuais ao invés de textuais nas mídias, à medida em que imagens são mais rápidas que textos, mas sequer argumentam ou fundamentam.
Han explica que essa propagação viral de informações, que busca engajamento e não argumentação, prejudica o processo democrático, visto que fundamentações não cabem em memes e tuites que circulam rapidamente. É possível afirmar, portanto, que a digitalização do mundo criou um fenômeno considerado praticamente irreversível: a verdade foi ultrapassada num piscar de olhos pelas informações.