Por Yan Gutterres
Por vezes, ela chega de forma quase imperceptível. O celular que ontem parecia veloz hoje é lento. A impressora que funcionava perfeitamente decide travar justamente quando você mais precisa. A geladeira, antes silenciosa, passa a emitir ruídos que ninguém consegue identificar. Há quem chame de azar, de desgaste natural, de “coisas que acontecem”. Mas nas entrelinhas de muitos desses episódios, mora um conceito silencioso, polêmico e antigo: a obsolescência programada, ou a prática de criar produtos com vida útil deliberadamente limitada para estimular o consumo constante.
Embora soe como algo moderno, a obsolescência programada começou no século XX, impulsionada pela indústria automotiva norte-americana, especialmente a partir de 1924, quando a General Motors (GM) começou a lançar novos modelos anualmente com mudanças de design para estimular a compra. Paralelamente, um grupo de fabricantes de lâmpadas em Genebra, em 1924, conspirou para reduzir a vida útil das lâmpadas. A estratégia se consolidou como uma forma de manter as vendas em alta, respondendo à superprodução e à saturação do mercado. A lógica era simples, porém implacável: se um produto dura muito, vende pouco. O pacto não durou oficialmente muito tempo, mas o princípio colocado em prática se espalhou como um vírus silencioso por toda a indústria do século XX.

Fabiano Michaelsen, CEO da XTech Digital Company, empresa do ramo de tecnologia, explica que essa prática tem impacto tanto financeiro quanto ambiental, já que o consumidor é levado a trocar o produto antes do necessário, aumentando o custo total de propriedade e o volume de resíduos. Ele esclarece também que a maioria das pessoas não têm consciência de que muitos desses produtos são desenvolvidos com a finalidade de durarem menos, fazendo com que associem essa substituição à uma chamada “evolução tecnológica”, sem perceber que isso faz parte de um ciclo planejado de consumo.
Um reflexo desse problema se manifesta no volume de lixo eletrônico gerado globalmente. Dados do Monitor Global de Resíduos Eletrônicos, da Organização das Nações Unidas (ONU), indicam que em 2022, foram produzidas 62 milhões de toneladas de resíduos, número que cresce anualmente em cerca de 2,6 milhões e poderá atingir 82 milhões até 2030. Além disso, apenas 22% desse total é reciclado de forma formal, expondo o restante dos resíduos a riscos de contaminação ambiental e perda de recursos valiosos. Em termos de durabilidade, estudos indicam que a vida útil média de grandes eletrodomésticos em países como Itália e diretrizes da União Europeia caiu de 10 anos em 2010 para apenas 7 anos em 2018, uma redução de 30% em menos de uma década.
Hoje, a obsolescência programada está presente em praticamente todos os setores, desde eletrônicos até vestuário. Um dos exemplos mais recentes e controversos é o das atualizações de software que deliberadamente reduzem o desempenho de dispositivos eletrônicos. Em 2017, a Apple admitiu que desacelerava iPhones mais antigos para "preservar a vida útil da bateria". A empresa foi multada em €25 milhões na França por não informar os consumidores sobre essa prática. Outro exemplo da empresa é o dos fones de ouvido sem fio, como os AirPods, que possuem baterias não substituíveis. Quando a bateria se esgota após 2 a 3 anos, o consumidor é forçado a comprar um novo par, gerando mais resíduos eletrônicos. Fabiano conta que as empresas recorrem à obsolescência programada como uma forma de manter o consumo constante e garantir probabilidade de receita, mas que hoje já existem alternativas sustentáveis e economicamente mais inteligentes, como recondicionamento, reuso e economia celular, permitindo reduzir custos, preservar recursos e ainda gerar novas oportunidades de receita.

Algumas ações já estão sendo tomadas para acabar com essa prática abusiva. Fabiano comenta que alguns países, como a França, já contam com leis específicas que punem a obsolescência programada, e que no Brasil, ainda estamos em um estágio inicial, mas há regulamentações ligadas à logística reversa e à responsabilidade pós-consumo que caminham nesse sentido, e que medidas como essa são importantes, mas que a sua eficácia depende da fiscalização e do engajamento das empresas em adotar práticas reais e transparentes.
O movimento "Right to Repair" (“Direito ao Reparo”) ganhou força nos últimos anos justamente porque consumidores e especialistas perceberam que a durabilidade estava se tornando uma peça de museu. Para Fabiano, esse movimento é um grande avanço, pois pressiona as empresas a permitir que os consumidores e técnicos independentes possam consertar produtos, prolongando sua vida útil, e que a obsolescência programada tende a diminuir à medida que o consumidor se torna mais consciente e exigente quanto à durabilidade e impacto ambiental dos produtos.
No fim do ciclo, o que sobra são resíduos. Em 2023, o mundo produziu mais de 60 milhões de toneladas de lixo eletrônico, segundo estimativa da ONU, com a maior parte descartada de forma irregular. Desse número, apenas uma fração é reciclada, e ainda assim de modo precário. O planeta não consegue acompanhar o ritmo em que substituímos aparelhos. Metais raros, como o cobalto e o lítio, extraídos para alimentar baterias, vêm de regiões marcadas por conflitos e exploração trabalhista. Enquanto isso, rios e solos de países pobres tornam-se depósitos tóxicos de placas-mãe e carcaças de plástico que viajaram milhares de quilômetros desde centros urbanos do outro lado do mundo. A obsolescência programada não é apenas um debate sobre consumo excessivo. É uma crise ambiental e ética. Ela é a soma de estratégias comerciais, comportamentos culturais, avanços tecnológicos e escolhas pessoais. É a história de um mundo que decidiu acelerar e agora precisa lidar com as consequências.