A história da chacina da Vila Moraes que não saiu nos jornais

Testemunha que viu assassinato de cinco jovens, há 23 anos, aponta erro na cobertura da Folha de S. Paulo
por
Lucas Martins
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09/11/2020 - 12h

“Eu tenho certeza de que a Folha estava errada”, disse Alexandre Oliveira, meu pai, sobre uma reportagem do jornal que noticiava a morte de quatro pessoas na Vila Moraes, zona sul de São Paulo, enquanto na verdade, foram cinco mortos, e por outras motivações. Oliveira conhecia todas as pessoas que foram assassinadas, e estava lá, na rua Sebastiano Mazzoni, minutos após o ocorrido.

O meu pai frequentava a Igreja Metodista Livre da Vila Moraes desde pequeno. Em 97, ele fazia parte do grupo de louvor, tocando bateria. A comunidade de fé realizava diversos trabalhos no bairro que alcançavam várias pessoas, e entre elas estava Silvino Schimdt Pedroso, conhecido apenas como Silvino. “Ele era do mundo do crime, mas como o parceiro dele tinha sido preso, ele começou a sair das ruas e se converteu”, conta Oliveira.

Oliveira tocando bateria
Oliveira tocando bateria durante um culto de domingo (Foto: Acervo Pessoal)

Silvino era genro de Dona Lindaura, membra da igreja, e seu ex-parceiro do crime era Luiz, irmão de Henrique Cruz, também membro da comunidade.

Luiz entrou para o crime muito cedo, e em 1997, com apenas 16 anos, ele estava preso na FEBEM, antigo nome da Fundação Casa. Além de ser irmão de Henrique, ele namorava Damiana Duarte, irmã de outra membra da igreja, chamada Leonice. Em setembro, o garoto foi liberado da FEBEM e, segundo Oliveira, alguns bandidos do bairro começaram a ser assassinados e logo “as pessoas ganharam que era o irmão do Henrique que estava matando”.

No dia 4 de setembro de 1997, às 20h, oito motoqueiros alvejaram o Passat em que estavam, José Cruz, Maria Justino e Luiz, pai, mãe e irmão de Henrique Cruz. Além deles, estavam Damiana Duarte, namorada do menor, e Silvino, que voltara a cometer crimes junto com o seu comparsa. Todos vieram ao óbito.

 “Três famílias da igreja perderam gente. O Henrique perdeu o pai, a mãe e o irmão. A filha da Dona Lindaura perdeu o marido e a Leonice perdeu a irmã. Se eu não me engano, o que menos levou tiro, foi o Seu Pelé (apelido de José Cruz), porque ele era mais franzino e tentou se esconder. Ele levou 17 tiros.”

Na reportagem da Folha de São Paulo, estava escrito que, segundo uma fonte anônima, o carro em que estavam os cinco fora visto em um bar negociando a compra de 4 Kg de cocaína, e que a chacina fora motivada pela falha na negociação, que não teria sido concretizada pela má qualidade da droga. Entretanto, Oliveira diz que Luiz buscara seu pai no trabalho e fora com a sua namorada e seu comparsa buscar a sua mãe na clínica em que ela trabalhava, na rua Sebastiano Mazzoni, mesma rua que a Igreja Metodista Livre de Vila Moraes fica até hoje. Saindo de lá, eles foram surpreendidos pelos atiradores, que agiram em retaliação aos assassinatos que haviam ocorrido no bairro, e que supostamente teriam sido cometidos por Luiz.

Notícia folha
Trecho da notícia da Folha (Acervo Folha de São Paulo)

No momento do crime, o meu pai estava ensaiando junto com o grupo de louvor na igreja, juntamente com Henrique Cruz, que era técnico de som da banda. O irmão mais novo de Cruz entrou no templo gritando “Henrique, o pai, a mãe e o Negro morreram!”, Negro era o apelido de Luiz. Todos saíram na rua e encontraram o Passat com os cinco corpos dentro. O meu pai foi junto com Cruz para a 26ª delegacia de São Paulo, na Vila Mercês, para registrar o boletim de ocorrência e depois eles foram reconhecer os corpos.

“No dia seguinte, tínhamos três caixões sendo velados na igreja. O irmão do Henrique e a namorada dele foram velados em lugares diferentes. A comunidade sepultou cinco pessoas na ocasião.”

A igreja foi aconselhada pela Polícia a velar o corpo de Luiz em outro lugar, por receio de que os “bandidos voltassem para pegar o corpo e aprontar com ele”, algo que era comum na época. Porém, a Folha colocou em sua reportagem que o menor teria sobrevivido ao ataque, e que no momento da divulgação da matéria, liberada no dia 6 de setembro de 1997, ele estaria internado na UTI do Hospital Geral de Sapopemba.

Vila Moraes
Igreja Metodista Livre da Vila Moraes (Fonte: Google Maps)

Nessa mesma igreja, foi formado o grupo de rap Apocalipse 16, um dos pioneiros do país. Charles MC, um dos integrantes, é amigo de infância do meu pai, que organizava a “Sexta Livre”, um evento semanal de rap na igreja. Em um desses encontros, um rapper chamado Luciano foi se apresentar e acabou conhecendo o Charles. Ambos, juntamente com o DJ Betico, formaram o Apocalipse 16, e Luciano passou a ser chamado de Pregador Luo. O grupo lançou uma música em 1998 chamada “Minha Oração”, na qual, em um dos trechos, os rappers fazem referência à história de Luiz.

Passe o pó sem dó, trafique a pedra, Negro. Todos não dizem que você nasceu pra isso mesmo? Esteja sempre protegido, esteja sempre bem armado, certifique que o tambor está sempre carregado. Quem dé cambão não vacila, não erra a mira, atira, que todos vejam que você não tem boi pra traíra, que moleques escravizem garotas, roubem carros, compram produtos mais caros. Proteja seu reino, proteja sua esquina, depois morra em chacina, juntamente com seu pai, sua mãe, e sua mina.”

Duas das três famílias que perderam entes na chacina ainda permanecem na Igreja Metodista Livre de Vila Moraes. Henrique Cruz, que perdeu os pais e o irmão na ocasião, se casou, e o meu pai, que estava com ele na 26ª delegacia de São Paulo, também estava com ele no altar, pois, junto com a minha mãe, ele foi convidado para ser um dos padrinhos.

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