O São João de todas as cores e de todos os estilos. Assim é conhecida uma das maiores festas do Nordeste, que, tradicionalmente, acontece no mês de junho. Devido à crise sanitária causada pelo coronavírus, o evento não foi realizado no ano passado, deixando dezenas de grupos juninos sem o brilho dos arraiais.
Apesar de única, a festa representa a cultura local de cada estado da região. Essas peculiaridades são o que traduzem e dão sentidos aos significados dos festivais. No Maranhão, por exemplo, o “Bumba meu boi” é o protagonista da cena. A tradição dá vida às diversas práticas que fazem parte dos costumes religiosos transformados em dança, batuque e toadas. Na capital São Luís, grupos como esse não faltam. Um deles é o “Boi de Sonhos”, que fez 26 anos no ano passado. Um ano de grandes desafios para os brincantes da dança. O colorido das roupas não pôde ser visto de perto, mas como bons apaixonados pelo São João, os organizadores do grupo levaram a alegria da festa por meio de uma “live”. Mas para a presidente do boi, Cileninha Santos, a energia virtual jamais será a mesma dos arraiais presenciais.
“O nosso São João foi interrompido pela primeira vez na nossa história. Não tivemos os tradicionais enfeites das ruas e dos arraiais, o cheirinho de bombinha e nossa tradicional comida típica. A forma que os grupos encontraram para cessar um pouco a saudade de quem dança e do público foram as “lives”, um refúgio geral para a cadeia artística, porém, só tivemos uma, que foi transmitida pelas nossas redes sociais, pois não tivemos patrocínio suficiente para custeá-las”, ressaltou.
No São João do Nordeste, uma das tarefas mais difíceis é obter arrecadação durante todo o ano. Os grupos juninos realizam bingos, rifas, promovem campeonatos e outras atividades para conseguirem arcar com as despesas geradas pelos gastos com figurinos, viagens e coreógrafos. Esse processo acontece antes, durante e depois dos espetáculos. Na pandemia, mesmo sendo beneficiados pela Lei Aldir Blanc, que dispõe sobre ações emergenciais enquanto houver estado de calamidade pública, os organizadores afirmam que o rendimento caiu consideravelmente, tanto para a economia dos estados, quanto para os integrantes da festa.
“Com o nosso trabalho, nós conseguimos remunerar muitos artistas, entre eles, músicos, costureiras, bordadores, coreógrafos e motorista. Todos esses profissionais ficaram prejudicados financeiramente, pois a maioria deles não tem trabalho formal e esperam o ano inteiro para ganhar um sustento melhor no São João”, finalizou a presidente do “Boi de Sonhos”.
Em 2019, pelo menos 1.300 atrações passaram pelo São João do Maranhão. Segundo o governo do estado, cerca de R$10 milhões foram investidos, com retorno quatro vezes maior para a economia estadual. Em 2020, o impacto negativo foi de R$40 milhões, já que, além de atração turística, o evento promove a geração de empregos temporários e renda. Para 2021, o Maranhão descartou a possibilidade de realização das festividades juninas.
A não realização de uma das maiores festas nordestinas não traz apenas prejuízos econômicos para a região. Aqueles que vivem essa tradição são os que mais sentem falta. Para o vaqueiro Eraldo Ricardo Costa, integrante do Bumba meu boi do Maranhão, o evento significa bem mais que um período festivo.
“É o calor dos amigos que cultivam os mesmos sentimentos nesta época. É o início dos ensaios tímidos, até os últimos mais elaborados. É o fim da tarde e sua brisa. É as noites estreladas e as fogueiras queimadas. O colorido das bandeirolas e o sabor das comidas típicas. É o combustível maior que faz essa festa uma das mais bonitas e gostosas de viver”, lembrou o brincante.
Mas o São João do Nordeste tem espaço para os mais diferentes ritmos. As quadrilhas juninas também fazem parte dessa festa. São elas quem dominam os espetáculos na maioria dos estados da região. A quadrilha “Dançando ao Luar”, da cidade de Pinheiro, na Baixada Maranhense, é destaque nessa época do ano. Os paetês dos imponentes figurinos do grupo também não puderam brilhar em 2020, e tudo o que havia sido planejado não aconteceu. Por causa da situação financeira e por falta de patrocinadores, a organização tenta não deixar a quadrilha acabar. Apoiados por auxílio cultural, o grupo planeja fazer “lives”, caso a pandemia não permita a realização presencial do evento este ano.
“As manifestações culturais não são muito valorizadas, e arrecadar recursos se tornou impossível, e, desde então, tudo piorou. Sem participantes e sem recurso, ainda lutamos para manter o grupo vivo. O pior sentimento do mundo é não poder viver um período mágico na nossa vida, entrar em um arraial e fazer o que se ama.”, disse a coordenadora da dança, Rosa Ferraz.
Em Campina Grande, na Paraíba, o sentimento é de imensa tristeza. A cidade é conhecida por sediar o maior São João do mundo desde 1983. A festa, que reúne mais de 1,5 milhão de pessoas todos os anos, também não aconteceu no ano passado, deixando de arrecadar cerca de R$200 milhões, segundo a prefeitura. Uma das juninas mais premiadas da cidade, a “Moleka 100 Vergonha”, que existe há 20 anos, só deixou de ensaiar no dia 18 de março, quando o primeiro caso de Covid-19 foi registrado em Campina. A esperança era de que a doença não chegasse na região, como conta o diretor de mídia da dança, Douglas Guttyerre Marques Macedo.
"O São João de Campina já estava com tudo pronto. O Parque do Povo, que é o centro da festa na cidade, já estava estruturado com camarote, já tinha data de festival e a maioria das atrações já estavam contratadas. Quando chegou a notícia, as mensalidades dos figurinos, que estavam sendo pagas, foram canceladas e parou. Parou tudo", afirmou.
O grupo é vencedor de grandes festivais, como o “Campinense de Quadrilhas Juninas”, o “Quadrilhas da Globo Nordeste”, o “Estrelas Juninas”, entre outros. Para amenizar os impactos sofridos pela pandemia, a organização da dança diz que os grupos juninos de Campina Grande receberam auxílio de duas parcelas de R$200,00, que foram pagas pela prefeitura, além de cestas básicas para dançarinos que estavam necessitando.
"Tudo o que a ‘Moleka’ ganha é revertido para a sede. Tudo é custeado pelo grupo. A maior dificuldade que tivemos no ano passado foi não colocar a dança nos arraiais. Para este ano, não será possível também. Embora Campina esteja vacinando pessoas de 60 anos, até lá, ainda não terá vacina para pessoas de 40, 30 anos. Nossa perspectiva é fazer uma transmissão mostrando algumas de nossas conquistas”, completou Douglas.
A situação é bem parecida em Teresina. A capital do Piauí também é palco de um grande festival nessa época: o “Encontro Nacional de Folguedos”, que reúne grupos culturais de várias partes do Brasil. Em 2019, o evento reuniu cerca de 400 mil pessoas em quatro dias de festa. As juninas que se apresentam no estado tentam driblar as dificuldades impostas pela pandemia. A quadrilha “Luar do São João”, por exemplo, é composta por cerca de 200 integrantes. Entre eles, atores, atrizes, músicos e produção. É uma das maiores do Piauí. Na última vez que os brincantes pisaram nos arraiais foi para receber o título de 1ª lugar no festival “Quadrilhas da Globo Nordeste”, levando o prêmio para o estado pela primeira vez. Em 2020, foi o momento de se reinventar. Para não deixar o mês de junho passar em branco, os coordenadores da quadrilha organizaram uma “live”, que conquistou mais de 120 mil visualizações. A “Luar do São João” também promoveu oficinas online de costura de figurino, maquiagem cênica, projetos culturais, dança junina e outras atividades.
Quando o São João foi suspenso no Piauí, a quadrilha já estava nos ajustes finais para a grande festa. Mais de 80% do trabalho já estava pronto. Segundo o presidente do grupo, Ramon Patrese Veloso, os prejuízos foram perceptíveis, já que, tradicionalmente, os recursos adquiridos não conseguem cobrir as despesas. Ele falou sobre as dificuldades em conseguir apoio público para a área cultural.
“Nossa fonte de receita é de rifas, bingos, eventos, emendas parlamentares e recursos de editais. Em 2020, nós tivemos uma queda grandiosa na arrecadação por conta da situação pandêmica. Não fizemos nossas tradicionais rifas, bingos e eventos, e teve diminuição na questão dos editais. Pensaram que só porque não teve quadrilha junina, nós não precisaríamos de ajuda. O investimento que a gente faz é em torno de R$ 400 mil por ano. Nós nos esforçamos muito para levantar esses recursos. Mas, muitas vezes, enfrentamos burocracias por parte do estado. Os grupos culturais vivem à míngua do poder público”, afirmou.
Em resposta à reportagem, o Governo do Piauí declarou que o estado recebeu R$31 milhões da Lei de emergência cultural Aldir Blanc, e que esses recursos subsidiaram o pagamento de três parcelas de R$600,00 aos artistas e técnicos afetados pela paralisação das atividades culturais. A Secretaria de Cultura do Piauí afirmou que realizou três editais para fomento da cultura no estado.
Em abril, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 795/21, do Senado, que reformula a Lei Aldir Blanc e prorroga a utilização dos recursos até 31 de dezembro deste ano. O objetivo é apoiar o setor cultural durante a pandemia. Mas o Projeto depende, ainda, da sanção presidencial.