Em 2019 Greta Gerwig surpreende mais uma vez lançando “Adoráveis Mulheres”. A adaptação do clássico “Mulherzinhas” recebeu 95% de aprovação dos críticos do Rotten Tomate e 92% do público, sem dúvida, uma honra. O filme começa com Josephine March, Jo, crescida em Nova York, vendendo suas histórias enquanto se sustentava dando aulas na pensão em que vive. Conhecemos seu futuro amor, Friedrich Bhaer. Eles não parecem ter intimidade
Os primeiros dez minutos do filme já são completamente diferentes das adaptações anteriores. A história é a mesma, alguns diálogos são copiados do livro. A construção narrativa, porém, é oposta. Não segue a vida das March linearmente: da infância a vida adulta. Gerwing opta por iniciar o filme e ter como linha temporal principal a vida adulta das irmãs. A infância é mostrada como lembranças, flashbacks. Esse poderia ser um detalhe, apenas uma questão de gosto e abordagem da diretora. Afinal, sendo um livro já tantas vezes adaptado, mudanças entre as obras cinematográficas são bem vindas.
A escolha, no entanto, pode ser entendida como um traço geracional. Não é algo intrínseco a Greta Gerwing, mas ao século XXI ao qual faz parte. É a aceleração do tempo. O sr. Bhaer é jovem, com um belo sotaque francês, elegante e bem arrumado. Diferente do professor Bhaer original: velho, por volta dos 40 anos e pobre. Suas roupas estavam sempre danificadas e com remendos, possuía barba mal feita e cabelos longos e desgrenhados. Além disso, era alemão de sotaque forte. Nesses primeiros minutos de filme, a primeira mudança de Greta: uma Josephine feminista moderna não se casaria com um homem velho e feio.
De Nova York, a história voa a Paris. Para Amy. Realizando seu sonho de aprimorar suas pinturas, vive a vida com a qual só podia sonhar na infância. Circula na alta sociedade com os melhores ornamentos e sedas, participando de bailes e chás. Encontra Laurie, por acaso, nas ruas da Cidade da Luz e o convida para uma festa que vai ocorrer à noite. É o começo da interação de ambos que acarretará em uma paixão. Da parte dele, ao menos.
Mesmo que no filme, Amy tenha amado a vida toda Laurie, para Alcott, o amor não se mantém tão fácil assim. O depressivo Laurie se torna o fanfarrão da madrugada, trata mal Amy e é o famoso “mulherengo”. Seu romance é tão pouco bem desenvolvido, fazendo parecer que Amy é uma substituta para Jo. Em outras palavras, o mais próximo que ele vai conseguir ficar de uma menina March. Enquanto o romance dos dois floresce como uma flor de bambu na obra clássica, Greta opta pelo verdadeiro romance hollywoodiano – em que tudo que leva a felicidade eterna acontece em três dias. Mostrando-se mais uma adaptação para que fique mais confortável aos padrões do século XXI, a diretora provavelmente reconhecendo que ninguém ficaria sentado várias horas para ver o filme, sacrificou o romance dos protagonistas, em detrimento dessa característica impaciente dessa sociedade.
Outra mudança que aponta modernização de Greta no filme é Tia March. Na produção audiovisual, ela não é rica por casamento, mas por herança. A carrancuda personagem ganha a simpatia do público na pele de Meryl Streep e com a incoerência entre seu discurso conservador a favor do casamento contra sua própria história, de alguém que prosperou solteira. Tia March ganha energia, movimento. É acelerada.
Todas as mudanças de Greta, trazendo 1898 para 2019, não são necessariamente ruins. Mas devem ser consideradas. Um dos pontos mais interessantes de livros de escritoras como Louisa May Alcott e Jane Austen é a narrativa à frente de suas épocas. A Primeira Onda Feminista aconteceu pouco depois das obras dessas autoras, no final do século XIX, porém conseguimos ver traços do movimento em suas obras. São sutis, não quebram o paradigma social vigente, mas são avanços. Para elas, não para nós. Em 2020, já não é tão chocante ver uma mulher perseguir seus sonhos em ter uma carreira ao invés de marido e filhos. Ainda assim, Greta apaga esses desenvolvimentos e coloca as personagens em contextos mais próximos ao nossos do que ao delas.
A aceleração do tempo cortou a dinâmica que existe em assistir e ler conteúdos antigos. Isto é, quando se está lendo “Mulherzinhas”, é natural a reflexão entre as realidades. É importante que passemos pelo processo de perceber o quão absurdo é uma jovem de vinte anos se casar com um homem de quarenta, assim como casar por dinheiro felizmente não é mais o destino para a maioria das garotas (apesar de ainda ser para uma parte considerável). Entretanto, Greta cortou consideravelmente parte desse processo no filme.
Há uma felicidade exacerbada no filme, principalmente nos flashbacks. Mesmos as dores de crescimento das irmãs parecem melhor do que suas realidades. Há sorrisos mesmo dentro de espartilhos opressores. Este saudosismo é uma leitura nossa. Em tempos acelerados, onde 24 horas já não parecem suficientes, o passado é pintado como uma calmaria desejável.
Outro ponto de divisão é questão de classes. No livro, o pobre e o rico são bem divididos. Quem é rico usa seda e quem é pobre usa “pano”. Os abastados moram em uma mansão e o “resto” em uma cabana. Para as irmãs a pobreza é um fardo quase impossível de aguentar. Meg e Jo trabalhavam desde jovens para ajudar no sustento da casa e nenhuma delas suportavam o que faziam. Mas pouco ficamos sabendo sobre isso no filme sobre isso. A pobreza é relatada de forma leve, sem o peso real que ocupava na vida dos March.
O tempo acelerado através dos outros filmes
Podemos perceber o século XXI na obra de Gerwing se compararmos as adaptações mais famosas da obra de Alcott. Há diferenças cruciais entre os filmes que nos fazem perceber as épocas nas quais foram filmadas e seus costumes.
“As Quatro Mulheres”, de 1933, era em preto e branco. O recurso das cores ainda não existia. Fidedigno ao livro, os diálogos pesam na versão com Katherine Hepburn como Jo March. Menos ação, mais fala. Era a primeira década do cinema falado e se aproveitavam deste recurso ao máximo. Portanto, ao contrário do filme de Greta, com diversos cenários tão dignos de atenção quanto os atores e suas falas, os cenários eram mais recatados e os atores eram a peça central (e praticamente única) das cenas. São impensáveis longos diálogos sem nenhuma outra distração em tela para o telespectador atualmente. No cinema, ele dormiria; na TV, trocaria de canal.
A versão de Elizabeth Taylor é uma cópia em cores do filme de Katherine. “Quatro Destinos” (1949) foi filmado em Technicolor, dando ao filme um aspecto mais inocente e sonhador. A história das irmãs March é uma fábula. E como uma, passa lentamente e se detém na beleza e nos pequenos momentos. A única diferença para o filme original é o que, talvez, detenha a atenção por um tempo maior do telespectador do século XXI. Mas não muito. O salto entre a segunda a terceira adaptação é de 55 anos. O cinema e o mundo mudaram nesse meio tempo. A computação pessoal dava seus primeiros passos e a palavra “globalização” já estava na moda. Sendo assim, longos diálogos com fortes atuações ou apostas altas na beleza da imagem não sustentariam um filme.
Seria um fracasso de bilheteria para uma grande produtora hollywoodiana. Uma quantidade maior de cenários e técnicas de enquadramento de cena são empregados. Cada March, inclusive a matriarca, ganha seu momento de tela. Amy, até então mimada e odiada, pode crescer em prol de um desempenho mais dinâmico. Com todas as mudanças para as outras versões, porém, não há como esquecer que a história se passa um século antes.
A visão de Greta, como já dito, anseia por selar a obra de Alcott como um símbolo feminista. É natural para a diretora. Lady Bird (2017), sua primeira obra, guarda semelhanças com Adoráveis Mulheres. É sobre as dores e as marcas do crescimento, especialmente para uma mulher, com a diferença de ser ambientada na Califórnia do começo dos anos 2000. A semelhança não para aí: ambas têm um toque autobiográfico da autora. A primeira história é uma adaptação da adolescência de Gerwing; já a segunda é um de seus livros favoritos. Não há como um diretor não imprimir sua marca em sua obra, ainda mais uma tão pessoal. Mas as marcas de Greta se confundem com as de um tempo sem tempo. Ao querer atualizar “Mulherzinhas” para uma audiência que vive sua primeira onda feminista, perde-se a inspiração pelas irmãs March e se torna um modelo perigoso e ultrapassado.