Genocídio canadense é desenterrado e condena governo

Buscas entre maio e julho deste ano descobrem mais de 1.100 túmulos não-identificados em terrenos de escolas residenciais indígenas.
por
João Curi
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23/10/2021 - 12h

Primeiro de julho de 1867. Nasce o Canadá, com a união de colônias inglesas em temor à invasão estadunidense. O povo canadense, porém, nasceu antes da colonização europeia. Comunidades indígenas já se organizavam em meio às florestas, planícies e montanhas do país norte-americano, ocupando centenas de territórios distintos, desconsiderados pela cartografia estrangeira.

Treze de julho de 2021. A tribo Penelakut anuncia a descoberta de mais 160 túmulos não-identificados no terreno de uma escola residencial para crianças indígenas. Somam-se mais de 1.100 sepulturas encontradas no Canadá entre maio e julho deste ano.

 

ETNICIDADE NATIVA

A Seção 35 da Constituição canadense de 1982 reconhece três grupos nativos, dentre eles, as Primeiras Nações (em inglês, First Nations), etnia composta por mais de 630 comunidades. Com a colonização, a herança indígena norte-americana e europeia deu origem a outro grupo, os métis (termo derivado do francês para “mestiço”).

Os inuítes, por sua vez, são popularmente conhecidos por “esquimós” e constituem a etnia de menor número, com cerca de 50 comunidades concentradas no ártico canadense.

 

A HERANÇA DO INDIAN ACT

A legislação, aprovada em 1876, impôs medidas rígidas sobre os povos indígenas, delimitando reservas, controlando entradas e saídas, e removendo crianças à força de suas casas para viverem em espécies de internatos. Durante o século XX, ao menos 139 das chamadas escolas residenciais eram administradas pelas igrejas Católica, Anglicana, Presbiteriana e pela Igreja Unida do Canadá (hoje, a maior denominação protestante do país), com apoio financeiro do governo federal.

Estima-se em mais de 150.000 crianças indígenas vitimadas pelo Indian Act entre 1883 e 1996. Segundo relatos de sobreviventes, apurados pela BBC, muitas crianças foram espancadas, abusadas verbal e sexualmente, e milhares morreram por doenças, negligência e suicídio.

"Para nós indígenas, isso não é uma descoberta, é apenas uma confirmação”, responde a parlamentar inuíte Mumilaaq Qaqqaq (representante do território de Nunavut na Câmara dos Comuns, entre 2019 e 2021) à BBC1. “Para outros canadenses, isso confirma o que falamos sobre a história — especificamente a que afeta os povos indígenas do Canadá: a maior parte dela é muito perturbadora”.

A última escola residencial foi fechada apenas em 1996. Em 2008, o primeiro-ministro Stephen Harper realizou um pedido formal de desculpas às pessoas afetadas por essas instituições.

 

GENOCÍDIO CANADENSE

A partir da coleta de milhares de horas de testemunhos de sobreviventes, a Comissão da Verdade e da Reconciliação indicou, em 2015, a ocorrência de um “genocídio cultural” em decorrência das práticas de aculturação cometidas nas 150 escolas residenciais investigadas. A decisão foi apoiada pela então Chefe de Justiça do Canadá, Beverley McLachlin - a primeira mulher a ocupar o cargo, com o mandato mais longo da história do país.

As recentes descobertas de túmulos não-identificados trouxeram à tona novas investigações, agravando as denúncias contra o governo federal.

“Demos muitos exemplos de colonização para o mundo”, conta Qaqqaq. “Mas tudo isso é embalado e apresentado de uma forma muito fofa: ‘Somos o Canadá, muito diverso, inclusivo, feliz e ótimo’. Na verdade, os indígenas não veem assim. E acho que cada vez mais canadenses estão percebendo isso”.

            Em pronunciamento no dia 31 de maio, o primeiro-ministro Justin Trudeau prometeu “ações concretas” para ajudar comunidades indígenas em suas buscas, embora os custos previstos excedam o orçamento oferecido pelo governo.

“Trudeau pode dizer o que quiser, que não foi ele quem criou essas coisas — mas ele ainda está levando crianças indígenas aos tribunais, ele ainda não fornece água potável para reservas em todo o país, nem uma vida acessível”, acrescenta Qaqqaq.

Durante anos, ativistas e povos indígenas pressionaram o governo por um inquérito acerca do número de mulheres indígenas que desapareceram ou foram mortas, em estimativa de mais de 4.000 vítimas, segundo o The Guardian. Na época de campanha, Trudeau prometeu direcionar esforços estatais para determinar o alcance e a extensão dos desaparecimentos, em contrapartida à postura do governo anterior, de ideais conservadores.

Em 2019, um relatório de quase 1.200 páginas, promovido por inquérito nacional, declarou que três décadas de desaparecimentos e assassinatos de mulheres indígenas configuram como “genocídio canadense”. O documento, intitulado “Reclaiming Power and Place”, reuniu depoimentos de pelo menos 2.380 pessoas – dentre elas, familiares de vítimas, acadêmicos, idosos e oficiais do governo -, e determinou que “ações e inações estatais enraizadas no colonialismo e suas ideologias” motivaram o extermínio.

“Nós sabemos que milhares de mulheres indígenas, garotas e pessoas 2SLGBTQQIA (two-spirits*, lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, questionando, intersexuais e assexuais) foram perdidas para o genocídio canadense até os dias de hoje”, divulga o relatório.

Protestos em prol das causas indígenas esquentam no Canadá. Em meio aos escândalos recentes, manifestantes derrubaram estátuas das rainhas Vitória e Elizabeth II no município de Winnipeg, durante atos no “Dia do Canadá”, feriado de fundação do país. Demais manifestações foram registradas, sendo canceladas as celebrações em diversos municípios e ocorrendo a remoção de estátuas de figuras envolvidas com as escolas residenciais.

(*Dois-espíritos, ou two-spirits, é um termo referente às pessoas que se identificam como detentoras de ambos os espíritos masculino e feminino, sendo usado por povos indígenas do continente norte-americano para descrever sexualidade, gênero e/ou identidade espiritual. O termo é uma tradução de “niizh manidoowag”, da língua ojíbua, ou anishinaabemowin, segunda mais falada dentre os idiomas indígenas canadenses.)