Por Patrícia Almeida Mamede
‘’Boneca. Eu costumava brincar de boneca. E casinha, também brincava de casinha’’. Maria Neuza, uma senhora beirando os noventa anos, se lembra bem das brincadeiras de menina. Maria, apesar da memória gasta pela idade, não hesita em responder às perguntas relacionadas à sua infância, como quais eram os brinquedos que seus parentes costumavam lhe dar em aniversários ou natais, ‘’muita boneca, muita coisa de casa e muita roupa’’. Além de brincadeiras, Neuza se recorda de algumas frases que costumava ouvir como, ‘’seja educada’’ e ‘’fica quieta, menina!’’.
Para essa senhora, ser mulher é ‘’ser carinhosa, prestativa, amar seus familiares e ter opinião própria’’, enquanto ser homem equivale a ser ‘’trabalhador, carinhoso e um bom amigo’’. Mesmo pontuando essa disparidade entre os sexos, Maria concorda com a afirmação de que não existem diferenças cerebrais entre homem e mulher. Ou seja, ela concorda que a ideia de um cérebro masculino e um cérebro feminino é um mito.
Uma matéria publicada pela BBC em julho de 2021 afirma o seguinte, ‘’ A ideia de que as mulheres eram intelectualmente inferiores aos homens era considerada um fato há vários séculos. A ciência tentou por muito tempo encontrar as diferenças subjacentes a essa suposição. Aos poucos, vários estudos foram contestando muitas dessas diferenças propostas e, ainda assim, nosso mundo continua teimosamente marcado por esse viés’’.
A Neurogenderings é uma rede formada por mulheres pesquisadoras das mais variadas áreas, atuando em diferentes países, que se intitulam enquanto ‘’neurofeministas’’. Essas mulheres buscam discutir as relações entre sexo, gênero e cérebro, juntamente às relações entre feminismo e ciência. A rede tem como principal objetivo examinar, através de uma perspectiva crítica, a produção do conhecimento neurocientífico, visando combater o que chamam de ‘’neurossexismo’’ (estereótipos em relação à feminilidade e masculinidade que estão presentes em grande parte da produção neurocientífica). A rede defende o fazer ciência por mulheres, justamente por acreditar que nenhum conhecimento pode ser desvinculado do contexto social, tempo e lugar em que foi produzido. Segundo essas mulheres, não há ciência apolítica. Donna Haeaway, uma das mulheres que compõe a rede, diz que ‘’a ciência feminista, portanto, é uma ciência que possui um posicionamento crítico’’.
A produção de artigos e estudos encarregados a esclarecer as mentiras perpetradas por milênios de que exista um cérebro masculino e um cérebro feminino é escassa não só no Brasil, mas globalmente. A premissa de que mulheres eram inferiores foi sustentada ao longo dos anos através da ideia do ‘’essencialismo’’, que defende a ideia de que exista uma essência em ambos os sexos, cuja estrutura e funções cerebrais são fixas e inatas. Apesar de vários estudiosos terem erradicado tal possibilidade através de pesquisas acadêmicas da então nova ciência, o assunto não parece se dar por encerrado até os dias de hoje. Tanto dentro da neurociência, como no pensamento de massa do senso comum, a ideia do ‘’essencialismo’’ permeia disseminada na sociedade, inclusive nos artigos e no seio maior da neurociência. Mas por que o consenso neste assunto parece ser tão difícil de se estabelecer?
Século XIX
No século dezenove, com o movimento feminista em ascensão, os cientistas, assim como os demais profissionais das mais variadas áreas de atuação, trabalharam para reforçar os estereótipos que reforçavam a noção de inferioridade da mulher. A premissa do essencialismo ignora o fato de o gênero ser um conceito antropoceno, ou seja, socialmente construído.
Gerda Lerner, uma historiadora que dedicou vinte e cinco anos para estudar a origem da opressão das mulheres escreveu em seu livro A Criação do Patriarcado, "quero enfatizar que a minha aceitação de uma ‘explicação biológica’ só é aplicável aos primeiros estágios do desenvolvimento humano e não significa que a divisão sexual do trabalho ocorrida depois, com base na maternidade, seja ’natural’. Pelo contrário, mostrarei que a dominância masculina é um fenômeno histórico porque surgiu de um fato biologicamente determinado e tornou-se uma estrutura criada e reforçada em termos culturais ao longo do tempo’’, descreve.
Cecilia Carter, uma brasileira que atualmente mora na Inglaterra, agora aposentada, foi professora de alunos do jardim da infância e fez uma observação a respeito do que envolvia ser um homem e ser uma mulher, ‘’ai que tá, na verdade, pensando bem, eu acho que é tudo a mesma coisa. É o ser humano, eu vejo assim. Acho que são as pessoas que colocam em caixinhas’’. No entanto, ela acrescenta, ‘’acho que todos nós temos um lado feminino e um lado masculino’’.
As pesquisas neurocientíficas costumam usar a mesma linguagem que Cecília quando dizem respeito às características femininas e masculinas. Um estudo levantado pela Universidade de São Paulo (USP), realizado pelo departamento de Ginecologia e Obstétrica fez a seguinte afirmação, ‘’A. APO é rica em aromatase e em receptores dos esteroides sexuais, possibilitando assim a conversão da testosterona em estrogênio, sendo este crucial para o processo de masculinização do cérebro masculino. No cérebro masculino, o estrogênio promove a desfeminização, o que leva à supressão das funções cerebrais femininas no homem, induzindo-o a assumir atitudes e exercer funções tipicamente masculinas’’. O estudo, no entanto, parece ignorar que tais características são desenvolvidas através da cultura, tendo impacto nos primeiros anos de vida do indivíduo.
Ao perguntar às pessoas - em sua grande maioria, estudantes - quais características elas entendiam enquanto femininas, obteve-se respostas como, ‘’vaidade, falar de forma delicada, gostar de nenês’’, ‘’sensibilidade’’, ‘’características delicadas’’. Para características masculinas teve-se outro polo, ‘’seco, reto, frígido, instável’’, ‘’sentar de pernas abertas’’ e ‘’agressividade’’. De trezentas pessoas, 32 acreditam que essas características não são inatas, 5 creditam que são inatas e o restante não respondeu.
Nota-se, segundo o que dizem as feministas da rede Neurogendering há uma importância em estabelecer uma relação interdisciplinar para que se possa estudar de maneira ética e crítica o que, de fato, são características femininas e masculinas e como por que são separadas assim. Muitas mulheres feministas que estudam o gênero enquanto um conceito socialmente construído explicam que tais características, na verdade, são desenvolvidas através do processo de socialização e educação que cada sexo irá desenvolver nos dos primeiros estágios da infância.
Gênero
Apesar dos estudos e debates sobre a questão de gênero estarem sendo cada vez mais discutidos dentro da academia e pautados em assuntos políticos, o conceito de ‘’gênero’’ em si, ainda é colocado enquanto uma característica inata e imutável, e que, apesar de significar um grande passo – principalmente em relação à luta da libertação das mulheres – a discussão permanece supérflua segundo algumas mulheres que se posicionam enquanto críticas de gênero.
Kelly Cristina, uma jovem de 24 anos, crítica de gênero e feminista diz que suas brincadeiras quando criança não eram diferentes das brincadeiras de Neuza, por exemplo, ‘’minha mãe sempre brincou comigo de boneca e de casinha dentro de casa’’, recorda Kelly. Cristina também fala a respeito dos brinquedos que costumava ganhar, ‘’ boneca, casa de boneca, vassoura... apenas brinquedos socialmente ditos para meninas, que socializam e influenciam a ideia de que a mulher cuida da casa’’.
Curiosamente, a disparidade de gerações entre Neuza, Carter e Kelly não parece ter erradicado a ideia de que pessoas do sexo feminino ganhassem certos tipos de brinquedos como bonecas ou apetrechos de casa. Diversas mulheres feministas, mais conhecidas enquanto feministas materialistas, estão produzindo conhecimento enquanto críticas do modelo de gênero. A ideia predominante dessas mulheres é mostrar como o processo de socialização do indivíduo – tendo influência nos primeiros anos de vida na formação dos indivíduos – impacta decisivamente na construção da psique na vida adulta, moldando homens para dominância e mulheres para a subserviência.
No livro O Complexo de Cinderela, Colette Dowling irá abordar o conceito do medo inconsciente da independência nas mulheres enquanto um fenômeno sociocultural que será desencadeado pelo processo de uma educação superprotetora cujas pessoas do sexo feminino receberão de forma diferente das pessoas do sexo masculino. ‘’A menina passiva nos três primeiros anos de vida seguramente (ou quase) persistirá sendo passiva no início da adolescência; da mesma forma, pode esperar da adolescente passiva um comportamento dependente de seus pais também quando atingir a vida adulta’’.
Kelly, enquanto crítica de gênero, relata sua visão a respeito do processo de socialização enquanto uma violência, ‘’a socialização naturaliza violências. Ensina mulheres a ficarem quietas e caladas, e depois culpabilizam elas pela violência que sofrem por permanecerem em silêncio. Sem contar nos apetrechos físicos da feminilidade como; unhas grandes, salto alto, roupas sempre muito coladas que impossibilitam mulheres de se defender da violência, colocando-nos enquanto indefesas e frágeis. Tenho 25 anos e mesmo entendendo e tendo consciência que posso ser mais do que aquilo que me ensinaram, ainda sinto a socialização quando tenho medo de ocupar espaços e falar por mim mesma, já que cresci aprendendo que lugar de mulher é em casa, quieta e calada, na posição de servir".
A ideia de tentar atribuir determinadas características enquanto masculinas ou femininas enquanto algo inato tem trazido complicações sociais, políticas e no âmbito da saúde tanto para mulheres quanto para as crianças que sofrem com disforia de gênero. Devido a uma escassa produção de conhecimento a respeito do gênero, crianças com disforia estão sendo incentivadas a tomar hormônios e fazer cirurgias com a finalidade de transacionar de gênero.
Psicólogos, a indústria farmacêutica e a indústria cirúrgica, sem compromisso com a ética, têm tratado o gênero enquanto um fenômeno essencialista, o que tem prejudicado a vida de inúmeras pessoas que sofrem com a disforia de gênero de maneira permanente e sem obter um resultado benéfico e sem promessa de erradicar com os problemas psicológicos que essas pessoas vêm sofrendo.
Nos Estados Unidos há uma grande porcentagem de pessoas que começaram o tratamento com hormônios e não conseguiram se libertar dos problemas que costumavam se queixar. Cari Stella, uma mulher de 22 anos, começou a tomar hormônios aos 17 anos e começou o processo de destransição recentemente. Cari postou um vídeo em uma de suas redes sociais relatando o processo, ‘’a transição não é o único caminho nem o melhor caminho para tratar a disforia de gênero’’.
Stella relata que decidiu parar de tomar hormônios como testosterona por razões de saúde mental, ‘’é muito difícil descobrir que o tratamento que te disseram que iria te ajudar na verdade deixou sua saúde mental ainda pior’’.
Chloe Cole, mulher de 18 anos, conta que iniciou sua transição aos 15, ‘’começando por volta dos 12 anos eu comecei a acreditar que eu era transgênero. Essa crença não era orgânica. Toda a mídia que eu consumi quando criança mostrou como era estúpido e vulnerável ser uma garota. Todas as imagens sexualizadas de mulheres davam-me uma expectativa irreal de feminilidade. Eu estava obcecada em me tornar um menino.’’ Chole relata achar que sua ansiedade desapareceria uma vez que realizasse a transição, no entanto ela diz, ‘’ninguém explorou porque eu não queria ser uma garota’’, e complementa, ‘’mais e mais crianças estão caindo na falsa promessa de felicidade se fizerem a transição’’.
Os conceitos mal estabelecidos de feminilidade, masculinidade e gênero promovem uma desinformação massificada, acarretando problemas políticos e sociais cada vez mais graves. O processo de socialização dos indivíduos tem pouca, se não nenhuma, importância dentro da academia. Mulheres feministas e críticas de gênero vêm tentando alertar os profissionais e os demais a respeito desta problemática, no entanto, a mídia parece semear um desinteresse na hora de articular matérias sobre isso.
Kelly relata sobre seu processo a respeito do conhecimento feminista, ‘’ informação salva. Entender sobre socialização apesar de ser dolorido é também acolhedor. Você entende que feminilidade não é escolha porque quando você abre mão dela, a violência fica muito mais visível. Mas quando aceitei que não gostava de ser feminina e que isso não me fazia ser menos mulher, que eu podia usar roupas largas e não usar maquiagem, que eu podia cortar meu cabelo, que eu não só podia como também deveria ocupar espaços, falar por mim mesma, e não mais aceitar aquilo que me desagrada, foi libertador.’’