Inúmeros são os motivos pelos quais o futebol é de extrema importância para o povo brasileiro. E quase todos eles são acentuados com a presença dos torcedores nos estádios. José Paulo Florenzano, coordenador do curso de ciências sociais da PUC-SP, analisa:
- O futebol ocupa um lugar central na cultura brasileira. Ao longo do século XX ele foi se constituindo em importante fonte de identidade, tanto para o conjunto da sociedade nacional, quanto para os grupos sociais, étnicos e culturais (trabalhadores, migrantes nordestinos, imigrantes italianos, afrodescendentes etc.) eis alguns outros motivos pelos quais o futebol se reveste de importância para o povo brasileiro: espaço de sociabilidade, prática lúdica, atividade profissional, indústria do entretenimento, dramatização dos valores, normas e ideais da sociedade.
FUTEBOL SEM TORCIDA É FUTEBOL?
O futebol brasileiro ficou paralisado por bastante tempo por conta da pandemia de Covid-19. E a volta dele foi abalada pela ausência da torcida nos jogos. Esse fato afetou o espetáculo, além de também de afetar o resultado dos jogos e comprometer a atividades das torcidas organizadas. André Guerra, presidente da Mancha Alvi Verde, a maior torcida organizada do Palmeiras, analisa o retorno do futebol sem público nos estádios:
- Um clube de futebol representa um povo. Quando esse povo está impossibilitado de estar lá fisicamente, o jogo perde o sentido. O Palmeiras representa 20 milhões de torcedores e está entrando em campo para ninguém. Com a volta do futebol na Europa, foi feita uma pesquisa para avaliar o real impacto da presença das torcidas nos estádios, chegando à conclusão de que os times menores, ou seja, com menos torcedores, melhoraram seus desempenhos nesse período de jogos com portões fechados. A atmosfera criada pela torcida influencia diretamente na performance dos jogadores e também da arbitragem.
André Guerra comenta também sobre o impacto econômico causado pela pandemia tanto no futebol quanto nas atividades da torcida:
- A gente faz todo o planejamento em função do calendário do Palmeiras, então quando a pandemia paralisou o futebol, nós acabamos paralisando as atividades também. O impacto econômico, embora gigantesco, não é nada quando comparado com a saúde e a vida das pessoas. Na minha opinião, o futebol só deveria ter voltado quando houvesse uma vacina. Ninguém discorda de que o dinheiro é importante, mas a saúde deveria ser prioridade.
Baby, presidente da Torcida Independente, a maior torcida organizada do São Paulo, segue a mesma linha de pensamento:
- A presença da torcida influencia muito. Se você acompanhar as estatísticas, os times visitantes estão tendo melhores resultados agora, porque antes tinha o fator da pressão, da emoção do torcedor, o Morumbi lotado. Na minha opinião o futebol não deveria nem ter voltado sem a liberação do torcedor no estádio. Futebol sem torcida não é futebol.
José Paulo Florenzano também concorda com a tese de que o futebol sem torcida perde o apelo:
- De um modo geral, as torcidas organizadas, no Brasil, desempenham um papel importante no modo como o futebol, no estádio, pode ser vivenciado, bem como o tipo de vínculo que o torcedor deve estabelecer com o time, concebido, nesse sentido, como “religião”, objeto de uma devoção sem limites. O “espetáculo” das arenas e estádios vazios trouxe para o primeiro plano a discussão acerca do papel, do valor e do lugar das torcidas. Sem a presença das torcidas, o jogo vira treino e o futebol perde significado.
- As experiências do torcer no estádio e do torcer na residência são incomparáveis. A primeira acaba inscrita de forma indelével na memória, compõe e enriquece a história de vida, reforça os laços de identidade coletiva; ao passo que a segunda quase sempre se perde, deixando apenas vestígios de uma sensação mais empobrecida, vivida em um pequeno grupo - completou Florenzano.
TRABALHANDO NO FUTEBOL EM MEIO À PANDEMIA
Embora tenha retornado sem a presença de público, o futebol exige que alguns funcionários imprescindíveis - e muitas vezes invisíveis - se arrisquem. Gandula do Corinthians há cinco anos, Manuel Valter de Oliveira Júnior confirma o receio de trabalhar em meio à pandemia:
- A gente fica com medo de pagar a doença, porque é uma doença que não é brincadeira. Então a gente sempre tem essa preocupação, porque eu tenho mulher e dois filhos pequenos e conheço casos próximos de parentes que morreram. Mas a diretoria e a comissão estão tendo cuidados com todos.
Funcionário de uma empresa do ramo de tecnologia da informação, Manuel não possui qualquer vínculo trabalhista com o Corinthians, e afirma que sua paixão pelo clube é o que mais o motiva:
- É muito mais prazeroso pelo amor que eu tenho pelo Corinthians do que pela remuneração. É uma experiência muito bacana, estar dentro do campo é uma sensação maravilhosa, e se pudesse eu levaria um corintiano diferente a cada jogo para sentir isso.
Manuel também comenta o impacto tanto econômico quanto esportivo que a pandemia teve na rotina dos gandulas:
- A pandemia impactou boa parte dos gandulas porque a gente vinha fazendo de quatro a cinco jogos por mês. É uma ajuda de custo que é um complemento importante dentro da nossa vida e também dá uma tranquilidade a mais para os nossos familiares. Durante a parada do futebol não recebemos essa ajuda. Graças à Deus a maioria ali está empregada e consegue se sustentar com o outro trabalho.
- O formato com a torcida por trás, acaba te induzindo, até por ser corintiano, a vibrar junto com ela. E nós estamos ali ao mesmo tempo tentando ser o mais profissional possível. E se a gente deixar a emoção falar mais alto, podemos trazer problemas para o próprio Corinthians. Quando tinha a torcida, a gente ficava mais emocionado e se policiava muito mais porque a energia era contagiante. Hoje, sem a torcida, os gandulas ficam mais expostos. O adversário acha que você está retardando o jogo quando você está seguindo regras - completou Manuel.
TORCIDA NO ESTÁDIO E SAÚDE MENTAL
Em um contexto já altamente estressante pela quarentena durante a pandemia, a ausência dos torcedores nos estádios pode afetar a saúde mental de muitas pessoas que vivem o futebol como uma espécie de válvula de escape. Anna Beatriz Carvalho Santos, integrante da Gaviões da Fiel, a maior torcida organizada do Corinthians, responde sobre a saudade dos estádios:
- Para muita gente o Corinthians é o ópio do povo. Você parece que vive em outro mundo quando você está ali presente num jogo. Para todos os torcedores, os jogos são como uma válvula de escape do cotidiano. Tem aquela pessoa que às vezes tem o dinheiro contado para pagar uma conta e o mínimo que sobra ela usa para poder ir a um jogo. Não só do Corinthians, mas no geral. Então faz muita falta, o futebol mexe com a gente.
- Eu me considero uma pessoa ansiosa e depressiva por natureza, então ir para um jogo do Corinthians mexia demais, porque a gente acaba esquecendo dos nossos problemas, você só vive aquele momento e nada mais, e isso faz muita falta para quem realmente gosta de futebol. O Corinthians para mim é algo difícil de escrever, quando eu estou assistindo um jogo eu esqueço de tudo, esqueço que eu tenho ansiedade, depressão. Por não estar indo em jogos, eu fiquei dias sem vontade de sair do quarto. Eu tenho pessoas para poder conversar, mas o que realmente motiva, que eu sinto o coração acelerar, é o futebol, ver o Corinthians, estar presente - completou Anna Beatriz.
André Guerra concorda com a análise da torcedora rival:
- Para quem está acostumado, o comparecimento aos jogos é algo que faz muita falta. Muitas vezes o estádio é a nossa válvula de escape, onde a gente descarrega a energia ruim da semana, tocando instrumentos e gritando para extravasar. É um hábito incorporado à nossa rotina. Então, do ponto de vista psicológico, essa “torcida à distância” acaba gerando muito mais ansiedade pelo acúmulo desse stress que não consegue ser descarregado.
O futebol perde boa parte de sua beleza sem a presença das torcidas nos estádios. Os torcedores, membros de organizadas ou não, vivem sensações únicas em dias de jogo. E esses sentimentos são extremamente aflorados com toda a mística que é estar presente em uma partida de futebol.