O setor da cultura sofreu uma real caça-às-bruxas desde a posse de Jair Bolsonaro na presidência. Bolsas foram cortadas e editais pausados, congelando o cenário cultural brasileiro por 4 anos. Mesmo assim, a efetivação desses fundos continuou fácil para alguns artistas como o “Sertanejogate” deflagrou: artistas como Gusttavo Lima e Luan Santana conseguiam com tranquilidade usar dinheiro público para financiar espetáculos em cidades minúsculas. Todos são, convenientemente, apoiadores do governo. Todos com arrecadação suficiente para não precisarem de ajuda estatal. Ao mesmo tempo, filmes nacionais de temáticas necessárias precisam ser criativos para se manter em exibição. Medida Provisória, por exemplo, cobrou meia entrada em todas suas exibições nos cinemas Itaú Cultural de São Paulo para se manterem no circuito por maior tempo possível.
Produtoras nacionais rotineiramente têm de dar cambalhotas para que o ciclo de um filme seja completo, mas não pelas razões que frequentemente estão no subconsciente coletivo. Não é a falta de talento, qualidade ou profissionais que faz a produção nacional ser algo aparentemente escasso, mas sim as complicações com distribuição, financiamento, legislação e formação de público. O sucateamento não está com o desaparecimentos dos filmes ou curtas, mas sim com todas as pontes que fazem conexão com a sociedade.
De acordo com o João Saldenha, da Boulevard filmes, distribuidora e produtora de longas, “O cinema brasileiro passou por um grande tsunami.A gente vê uma instabilidade da Ancine desde 2018, e logo em sequência veio a pandemia, que afetou todos os espaços de produção e distribuição no audiovisual; realizadores, distribuidores, até mesmo órgãos de fomento”.
Dados da ANCINE, no ano de 2021 os filmes brasileiros foram responsáveis só por 1,3% de toda a bilheteria nacional. A falta de publicidade e a pequena cota de tela são os principais culpados disso; em média, o gasto mínimo para que uma campanha de marketing vá bem é de 1,5 milhões de reais, quantia inacessível para a maioria das distribuidoras nacionais sem incentivo do governo ou de setores privados.“Há um vácuo de financiamento no setor de distribuição, além de profissionais especializados. Sempre vejo cursos pontuais de roteiro, direção, mas quase nunca há um curso sobre distribuição cinematográfica. Tenho percebido que saber falar de distribuição, com propriedade e firmeza, é algo raro que os profissionais carregam; não sabem os caminhos, os processos.”, explica Saldenha.
Em entrevista concedida à Agemt, a cineasta e sócia da distribuidora Pena Capital, Rafaella Serret, fala das dificuldades do cinema nacional em se manter nas salas dos principais cinemas:“a gente precisa tomar cuidado, pois constantemente surge um projeto para diminuir a cota de tela para filmes brasileiros em sala de cinema. Acho que até seja o caso de aumentar essa cota, sinto falta de iniciativas que visem essa formação de público para que ele próprio possa se desenvolver nessa questão. Uma cota de tela com mais da metade de filmes nacionais faz o público conhecer melhor o cinema”.
A conscientização de que esse público só existirá se for incentivado levanta a questão: qual seriam os gostos do brasileiro se tudo estivesse ao alcance? Os comédia são a maioria entre os grandes sucessos de bilheteria, porém filmes fora desse gênero vem ganhando espaço, como Marighella e o próprio Medida Provisória que conseguiu atrair 200% mais público do que Homem Aranha nos cinemas da prefeitura de São Paulo.Com acesso, como e quanto a identidade brasileira mudaria de si? O estrangeiro ainda seria visto da mesma forma, também?
O aumento da cota de tela já é realidade em outros países, a Coreia do Sul é um modelo disso.Lá, a cota para filmes nacionais é por pelo menos 73 dias, “O mercado da Coreia do Sul tem cota de tela para filmes nacionais de mais de 50%. O filme Parasita, por exemplo,em termos de êxito de mercado, o filme foi super comercial, você só consegue chegar nisso se há incentivo para que aquilo seja produzido e seja visto. Uma cota de tela com mais da metade de filmes nacionais faz o público conhecer melhor o cinema, se relacionar mais profundamente”, discorre Raffaella.
Fora das salas de cinema, ações de incentivo ao cinema independente e brasileiros são mais importantes que nunca. A soberania dos streamings funciona como uma faca de dois gumes, nesse caso. Enquanto tornam o acesso mais cômodo aos consumidores e são planejados para que a experiência do usuário seja descomplicada, intuitiva e personalizada, é um monopolizador que soma para a precarização da indústria de dentro para fora. É interessante para a visibilidade do país que a Netflix tenha em seu catálogo produções como Coisa Mais Linda ou 3%, mas a indústria nacional não é realmente contemplada nesses processos visto que essas grandes empresas não diversificam suas parcerias. “Algo que não pode faltar para o futuro é uma regulação de streamings. Há um lobby muito pesado que eles fazem no Senado para que essas medidas passem mais flexíveis ou não passem, mas está mais que na hora de ser discutido. Apesar de termos visto uma grande inserção dos Streamings no mercado brasileiro, para produção de conteúdo nacional, quem são as produtoras que estão com eles? Essa regulamentação é essencial para aumentar o leque de produtoras que trabalham com eles. Também é importante para reverter a tributação dos streamings para o fomento de novas obras. E outro ponto: esses streamings estão presentes e atuantes - mesmo que seja com 10 produtoras ao todo pelo Brasil, que é bem pouco- mas não fornecem dados. Não sabemos quanto aquele conteúdo foi visualizado, quantas vezes, em que região, etc., e nem sabemos dos critérios contratuais. Uma vez que não há regulamentação, não é possível planejar muito”, analisa João.
Falta tempo e um novo mandato para que o setor audiovisual consiga caminhar com mais segurança. A geração atual de realizadores começou a carreira com vários percalços, mas equivale suas chances com o impulso de agir, como observa Raffaella,”tenho visto também vários núcleos de cineastas se juntando e criando selos de filmes independentes, produtoras, revistas novas de cinema, principalmente escrita por pessoas jovens. Acho que isso mostra a vontade das pessoas de discutirem cinema, tomarem para si essa discussão, e acho que com esse próximo governo que vier as coisas podem melhorar.”