Falta de ergonomia diante das telas afeta a saúde de quem trabalha em casa

Trabalho remoto intensifica problemas posturais e as dores musculares causadas pelo uso prolongado de telas sem o cuidado necessário.
por
Júlia Polito
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17/11/2025 - 12h

Por Júlia Polito

 

Andreia Basílio tem 38 anos e trocou o escritório pela mesa da sala, onde passa a maior parte do dia diante do notebook. O conforto do trabalho remoto logo revelou um custo: o corpo começou a dar sinais de alerta. Nos últimos tempos, Andreia tem sentido dores constantes no pescoço e percebeu que sua postura piorou significativamente desde que começou a trabalhar de casa. Ainda assim, não buscou atendimento médico, tentando lidar sozinha com o incômodo que se tornou parte da rotina. O que começou como uma solução prática para flexibilizar o trabalho tornou-se um desafio para o corpo humano.

O aumento do home office e a presença constante das telas na rotina de profissionais de diferentes áreas transformaram o modo de trabalhar e, junto com isso, surgiram novos problemas de saúde. Entre as queixas mais comuns estão as dores musculares, o cansaço visual e as lesões por esforço repetitivo, todas agravadas pela falta de uma estrutura ergonômica adequada. Por conta disso, Andreia tentou pequenas adaptações ao longo do dia, ajustando a cadeira ou apoiando o computador em livros, mas admite que o improviso não substitui um ambiente pensado para o bem-estar físico. Mesmo com pausas para tomar um café ou ir até a portaria, as tensões nos ombros e a rigidez no pescoço continuam a aparecer com frequência, especialmente nos dias em que passa mais tempo diante das telas.

Foi o que também observou a fisioterapeuta Soraya, especialista em ortopedia, com 25 anos de formação e mais de duas décadas de atuação clínica. No consultório, ela percebeu que o número de pacientes com dores posturais aumentou consideravelmente desde que o trabalho remoto se tornou rotina após a covid 19. Ela comenta que as alterações posturais, tendinites, lombalgias e cervicalgias cresceram junto com o home office, e não foi por acaso. Segundo ela, a ergonomia doméstica ainda é precária: muitas pessoas trabalham na cadeira da sala, no sofá ou até mesmo na cama, posições que sobrecarregam o sistema musculoesquelético e, ao longo do tempo, geram dor e inflamação.

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                        (Foto/Reprodução: Arquivo pessoal)

 

No Brasil, a Norma Regulamentadora nº 17 (NR-17) estabelece parâmetros para adaptar as condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores. Criada pelo Ministério do Trabalho, ela determina que as empresas devem oferecer mobiliário, equipamentos e condições ambientais adequadas, além de instruções ergonômicas que garantam conforto, segurança e desempenho eficiente. Mas, na prática, grande parte das empresas ainda descumpre essas diretrizes — especialmente quando se trata do home office.

Soraya conta que já atendeu diversos pacientes cujo quadro de dor se agravou por causa da má postura. Muitos deles já apresentavam algum problema ortopédico anterior, como um desvio de coluna, bursite ou início de hérnia de disco, e acabaram piorando com o trabalho remoto. Ela lembra de um caso mais grave: um homem que passava o dia em reuniões, mal acomodado em uma cadeira comum. O quadro evoluiu para uma lesão lombar séria, quase cirúrgica. Com muita fisioterapia, RPG e pilates, o paciente conseguiu reverter o problema — mas apenas depois de adaptar sua casa com aparelhos corretos.

A posição errada durante longas horas pode comprometer músculos, articulações e até estruturas da coluna. Além disso, o uso de notebooks sem teclado e monitor separados exige que o usuário mantenha o olhar voltado para baixo por muito tempo, forçando pescoço e ombros e gerando sobrecarga. Assim, trabalhar em casa sem o suporte físico de um ambiente projetado para o corpo faz com que muitos repitam diariamente posturas prejudiciais. Com o tempo, o que começa como uma dor passageira pode evoluir para problemas crônicos, como hérnias de disco e tendinites.

Para Soraya, quem já está estabelecido no modelo remoto precisa transformar um canto da casa em um espaço realmente pensado para o trabalho. Ela reforça que é essencial ajustar a altura da mesa, da tela e do apoio de braços e pés, além de investir em uma cadeira adequada. Segundo a fisioterapeuta, ficar muito tempo na mesma posição pode causar compressões nervosas, como no ciático e levar a fraquezas musculares, desvios posturais e hérnias de disco. Também alerta para o aumento de tendinites, bursites e outras patologias que atingem o sistema musculoesquelético.

Apesar do desconforto, Andreia costuma encarar as dores como algo temporário. Enquanto busca maneiras de equilibrar produtividade e bem-estar, tenta reorganizar o espaço em casa para torná-lo mais confortável. O trabalho remoto, que trouxe praticidade, também a fez repensar a importância de cuidar da própria saúde. Essa consciência, reforçada pelas orientações de profissionais como Soraya, tem sido o que a motiva a incluir atividades físicas na rotina e a se mover mais entre uma tarefa e outra.

E ela não está sozinha. Em cada casa transformada em escritório há um corpo aprendendo a negociar seus limites com as demandas do trabalho. O silêncio das paredes é cortado pelo som contínuo do teclado, e a dor, aos poucos, se torna um idioma comum entre os que vivem diante das telas. Um desses corpos é o de Roberto Antonio, 58 anos, corretor de seguros. Desde que começou a trabalhar em casa, há cinco anos, ele sente que o corpo passou a dar sinais contra a rotina. As dores começaram discretas, um incômodo nas costas depois de longas horas sentado. Depois, o pescoço começou a endurecer, o braço a doer e o pulso a inchar.

Quando o diagnóstico de tendinite veio, não houve surpresa, apenas a constatação de algo que ele já pressentia: o corpo havia chegado ao limite. Ele descreve o dia como uma sucessão de pequenos desconfortos que se acumulam até se tornarem insuportáveis. A cadeira da sala, usada na mesa de jantar, já perdeu o estofado. A mesa é baixa demais, obrigando-o a curvar os ombros. A luz do teto projeta uma sombra incômoda sobre o teclado, e ele precisa se inclinar ainda mais para enxergar a tela. Cada gesto — digitar, clicar, mover o mouse — é repetido muitas vezes por dia, como um ritual de desgaste. O corpo, antes invisível, torna-se o centro da experiência de trabalhar.

Antes da pandemia, o corretor trabalhava presencialmente, em uma sala alugada, com mobiliário adequado e estrutura ergonômica correta. Com a chegada do vírus e o isolamento, devolveu as chaves e transformou o lar em escritório. O corpo humano, feito para o movimento, foi aprisionado em cadeiras estáticas e mesas improvisadas. A promessa de liberdade que o home office trouxe se tornou, para muitos, uma nova forma de confinamento. O trabalho saiu do escritório, mas as exigências ficaram e, sem fronteiras claras entre o que é casa e o que é expediente, o corpo passou a não saber mais quando descansar.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a ergonomia como fator essencial para a saúde ocupacional. De acordo com um relatório recente, as lesões por esforço repetitivo (LER/DORT) já estão entre as dez principais causas de afastamento do trabalho no mundo, afetando especialmente profissionais de escritório e tecnologia. A OMS alerta que o número de casos de dor crônica em trabalhadores remotos cresceu 30% nos últimos cinco anos, e que a tendência é de alta se não houver mudanças estruturais. Enquanto isso, as empresas ainda vagam entre o discurso e a prática. A Norma Regulamentadora nº 17, que obriga o empregador a garantir condições ergonômicas mesmo fora do ambiente físico, é frequentemente ignorada.

Andreia e Roberto representam dois lados de uma mesma história: a tentativa de adaptar o humano ao digital sem medir as consequências físicas dessa transição. Ambos buscam maneiras de sobreviver à rotina que a tecnologia prometeu simplificar, mas que o corpo insiste em complicar. Como lembra Soraya, o corpo não entende de metas nem de prazos, entende de dor. E ela é, talvez, a forma mais honesta de resistência diante de um mundo que pede produtividade constante.

No fim do dia, quando o computador se apaga e o silêncio volta, fica o eco das dores que o trabalho remoto espalhou pelas casas. Andreia e Roberto são apenas dois exemplos de um mal que grande parte da sociedade sofre. Ela estica o pescoço, ele massageia o pulso. Ambos respiram fundo e continuam a rotina, afinal, a vida não para. O trabalho passou, mas a dor insiste em ficar.