Faço pixo para mostrar que eu estou vivo

O Pixo como resposta a invisibilidade na periferia
por
José Pedro dos Santos
Renan Barcellos
|
31/10/2023 - 12h

                                     

Por ser o principal centro econômico do Brasil, a cidade de São Paulo tem, aproximadamente, 12,5 milhões de habitantes. Entre eles, existem várias personalidades, cada qual com a sua opinião sobre o que ocorre na cidade. Sendo o melhor sistema governamental existente até a atualidade, a democracia tem como objetivo principal atender a vontade da maioria. No entanto, diversos temas são discutidos a anos na região, principalmente aqueles mais polêmicos, sobretudo quando envolve diferentes atores paulistanos. Eleito em 2016, o ex-prefeito João Doria, teve como uma das suas principais pautas a temática do Pixo (forma escrita pelos praticantes) nas ruas paulistanas. Filiado ao Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), com posicionamento mais atrelado as pautas conservadas de direita, o tucano foi duro no combate dessa prática.

Porém, todo esse contexto reacendeu debates sobre o pragmatismo estrutural esperado da cidade mais desenvolvida do país. Diversos questionamentos sobre esse aspecto da cidade já se tornaram patrimônio cultural, principalmente entre os mais jovens. Exemplo disso é a famosa frase do rapper Criolo. ‘’Não existe amor em SP’’, embora seja uma frase curta, exprime o sentimento de milhares de cidadãos que enxergam nesse objetivismo corporativista da metrópole, a causa da falta de afeto nas relações interpessoais do cotidiano, chegando a citar a pichação em sua letra.

O Pixo caracteriza-se como outro elemento cultural que gera polêmicos debates em São Paulo. As medidas radicais do psdbista contra a prática, geraram novos questionamentos sobre a falta de espaço cultural que propicie voz para aqueles que são jogados a margem da sociedade e que enxergam na pichação, a possibilidade de serem escutados.

               Diversas manifestações contra o radicalismo político do ex-prefeito surgiram visando questionar as medidas contra a cultura, frases como ‘’Cidade de concreto’’ ou ‘’Cidade cinza’’ passaram a ser ainda mais presentes entre os paulistanos, gerando debates entre aqueles a favor do ato e aqueles contrários, ou seja, a dualidade do Pixo.

critica as ações repressivas de João Doria

Representados pelo ex-prefeito e govenador, as classes ricas, mais influente em questões políticas devido a sua riqueza, apoiam a guerra contra os pichadores, defendendo as penas exercidas por Doria, argumentando que a pichação tira a seriedade da cidade e afirmando que o Pixo não se caracteriza como arte, ou seja, desclassificando qualquer caráter cultural.

Todavia, a pixação já apresenta longo histórico de cunho social. Inspiradas nas Runas Anglo-Saxônicas, formadoras do primeiro alfabeto europeu, o Futhorc, as primeiras manifestações de pichação, da forma como ela é conhecida no contexto contemporâneo, começaram a surgir na década de 80, com o movimento Punk Rock. Sua percepção de demarcação de um território público com escritas favoráveis as eclosões culturais que denunciavam as torturas físicas e sociais sofridas por minorias e os dilemas morais vivenciados por jovens revolucionários, compactuava com as pichações encontradas na década de 60, durante a Ditadura Militar, que, no entanto, não utilizavam as inspirações do alfabeto Futhorc.

 

                                                                                                                                                                         Alfabeto Anglo-Saxônico (Futhorc)                                                                                                                                                                                      

 

    

                           Pixo contrário a Ditadura Militar (1964-1985)

Choque, ex-pichador da década de 80, com vasto repertório na modalidade, destaca que inicialmente a pichação encontrada na cidade de São Paulo tinha cunho político, sobretudo a partir dos anos 60, com a instauração da Ditadura Militar. Frases como ‘’abaixo a Ditadura’’ não apresentavam nenhuma preocupação estética no formato das letras, o enfoque era na mensagem e não na sua grafia. Somente a partir da década de 80, com a consolidação da Contracultura no Brasil, a pichação, segundo a visão de Choque, tomou a perspectiva de utilizar a estética encontrada no logo de bandas como Iron Maiden em suas letras e o objetivo de ser um marco nos patrimônios públicos que denuncie a existência dos marginalizados para toda a sociedade. O pichador afirma que essa ressignificação, a forma na qual a simples cópia das escritas de povos bárbaro de milhares de anos atrás para os povos bárbaros de São Paulo, é um exemplo caricato de antropofagia.

Assim, a incultura encontrada na atual elite paulistana, representada pela ignorância política de João Doria, torna-se compreensiva, já que ambas são consequências sociais herdadas por seus antepassados, a classe burguesa que a décadas comanda e enriquece a custas dos mais pobres. Ou seja, o Pixo incomoda-os por questionar o seu poder e prestígio social, logo, não deve ser considerado um fator cultural, na perspectiva elitista e opressora desse grupo social.

Todo esse enredo permite concluir que a dualidade do Pixo pode ser sintetizada em um confronto entre os ricos e os pobres, mas especificamente pela opressão dos primeiros em relação aos segundos. A mesma elite que demoniza e invalida a pichação, estereotipando os praticantes como pobres, desinformados e marginais, não demonstra qualquer tipo de remorso com relação as condições insalubres encontradas nas periferias brasileiras, como os esgotos a céu aberto, a fome, a miséria, a opressão policial, a falta de educação e o tráfico. Dessa forma, todo esse contexto caótico e desumano faz com que a síndrome de invisibilidade seja presente na vida de milhões de jovens que encontram no Pixo, uma forma de serem escutados.

Djan, pichador ainda em atividade e um dos maiores nomes do Pixo paulista, enxerga a pichação como uma forma de afrontar a hipocrisia da classe burguesa. O incomodo com a situação encontrada nos patrimônios públicos pichados em lugares ricos da cidade, contra a indiferença em fatores caricatos da periferia, como a falta de saneamento básico, são fatores cruciais, no olhar de Djan, para a existência da pichação. Para seus adeptos, a intenção do Pixo é justamente chegar nos ricos e denunciar a existência dos marginalizados. Ele destaca também que a pichação é responsável por ensinar uma geração que não encontra no sistema educacional brasileiro, representado pelas escolas, o necessário para a sua sobrevivência parente uma sociedade opressiva. Djan destaca que a pichação ensina seus descendentes a sobreviverem sem dinheiro, se locomover pela cidade e saber lidar contra a repressão social simbolizada na violência policial, além de ser uma forma de expressão responsável por tirar inúmeros jovens do crime.

A hipocrisia citada por Djan é exemplificada no caso da prisão do pichador mineiro Goma, V em 2016. Ao não contribuir com as investigações policiais que caçavam o pichador Maru, Goma foi acusado por fornecer materiais para a pichação, crime ambiental e apologia ao tráfico. O pichador ao afirmar para a polícia que não obtinha informações sobre Maru foi preso por apologia, já que ele tinha uma loja que vendia material para a prática do pixo, além de vender peças de roubas que tinham folhas de maconha como estampa. Goma afirma que foi preso com pessoas que mataram, roubaram e traficavam, fazendo com que além do sentimento de injustiça, o pichador sentisse um constante medo do sistema prisional.

Goma em atividade na madrugada de Belo Horizonte

Juntamente dele, a polícia interrogou outro famoso pichador de Minas Gerais, conhecido por Sadok, preso por quatro meses junto de Goma em 2010, devido a pichação. Porém, o mesmo não estava mais na atividade do Pixo durante a segunda prisão de Goma. Sadok afirma que a polícia apresentou pichações as quais ele não conhecia e, mesmo não estando mais em atividade, o pichador foi chamado para prestar depoimento, sofrendo constantes ameaças de prisão durante esse processo.

Além de representar o caso de opressão contra a população periférica, o caso de Goma demonstra a hipocrisia que a classe política e a elite econômica cometem contra a sociedade mineira, já que uma das acusações que resultaram na prisão do pichador foi de crime ambiental, sendo que foi nesse mesmo estado em que a empresa Samarco Mineração, com aval do governo de Minas Gerais, intensificou suas atividade próximas a Barragem de Fundão, que rompeu-se no ano de 2015, resultando em danos imensuráveis para a biodiversidade local e na morte de 19 pessoas. O caso foi utilizado para defender a liberdade de Goma, que passou a ser visto como herói por parte da cultura de rua mineira, chegando a ser homenageado nas letras dos MC’s FBC, Clara Lima e Djonga, integrantes do famoso coletivo de Rap mineiro DV TRIBO.

‘’DV TRIBO, BH, 2016

Salve Goma

PJL a todos os pichadores presos injustamente’’

FBC – DVERSOS II

‘’Com dispô pra subir, depor e cuspir
Desapontando, cumprindo tratos
Se tratando em construir ou desconstruir
Fato forte a refletir é que eu rimei esses verso tudo
E o Goma ainda não tá aqui’’

Clara Lima - Diáspora

‘’157, 33
Vi vários cara assinar sem nem saber escrever
Sadok e Goma na cidade inteira
Prenderam os piores, pergunta lá pra ver
Muito cara certo entrou na vida errada
Dinheiro sujo compra roupa limpa
Essa é a prova que os opostos se atraem
Igual polícia e um preto na parede
Coisa que não entendo junto ainda’'

Djonga – O cara de Óculos pt. Bia Nogueira (Histórias da minha área)

 Pixo em solidariedade a Goma e condenação à Samarco pelo desastre de Mariana

Manifestação em defesa da liberdade de Goma, em Belo Horizonte (MG)

Após 8 meses preso, Goma teve a sua liberdade provisória liberada. Em contrapartida, foi obrigado a cumprir prisão domiciliar com o uso de uma tornozeleira que para ele significa tristeza e incapacidade, limitando várias de suas atividades, fato que o fez parar de pichar, demonstrando o uso opressivo do aparelho governamental contra a população períferica, fato que não ocorre contra as classes mais ricas. Mesmo não obtendo a liberdade total, continuando na posição de vítima perante a opressão do Estado, diferentemente do ocorrido com os responsáveis pela tragédia de Mariana, a flexibilização da pena de Goma foi resultado direto da manifestação realizada por outros pichadores, fato perfeitamente explicado na fala de uma das maiores referências do pixo no Rio de Janeiro, Naldo.

O pichador carioca afirma categoricamente que a intenção do governo é justamente deixar o povo sem informação. Porém a população periférica não é burra, ela apresenta capacidade de ver o que apresentado no jornal e interpretar os fatos. Ele acredita que o que resta para essa parte do povo é justamente protestar, demonstrar a sua indignação e sua existência atras dos muros. Segundo ele a intenção é justamente incomodar, mostrar que mesmo com todo o sistema ao seu favor a classe política não está isenta a críticas.

Recentemente, no estado de São Paulo, outra medida autoritária dos governantes contra um pichador gerou novas polêmicas no mundo do Pixo. Mauro Neri foi preso pela polícia militar, a mando de João Doria, ao retirar a camada de tinta cinza que cobria uma de suas obras. O pichador afirma que estava apenas removendo o cinza de uma obra sua que apresentava a autorização do dono do muro para ser realizada. Mesmo assim, acabou por ser preso em flagrante pela polícia. Seu caso gerou a mesma comoção que o do Goma, já que a classe artística periférica já iniciou protestos favoráveis a liberdade do pichador, utilizando do Pixo como ferramenta de manifestação. Neri ainda afirma que sua prisão, apesar de toda injustiça, apresenta um saldo positivo. Segundo ele para o vândalo ser criminalizado é positivo, já que deixa explicito toda a injustiça e desigualdade que permeia a sociedade brasileira, fazendo com que mais pessoas passem a ser adeptas do movimento.

Obra feita no contexto da prisão de Neri que questiona a perseguição de João Doria contra os pichadores

Toda essa conjuntura demonstra que a guerra contra os pichadores não se trata de uma guerra equânime entre o Estado e criminosos. Trata-se de uma perseguição específica contra a forma de manifestação dos mais pobres por parte da elite brasileira, que condena o ato, porém não procura entender tudo que ele representa. A pichação é um sintoma de um país desigual, que não pune as grandes empresas, como no caso da Samarco, mas persegue aqueles que são completamente renegados de auxílio do governo, se tornando vítimas da invisibilidade social citada por Dimenstein. O questionamento continuará existindo enquanto os governantes negligenciarem qualquer atenção aos direitos constitucionais de todo cidadão, ausentes nos lugares mais pobres, sem qualquer tipo de discriminação. Enquanto isso, o Pixo continuará sendo a síntese da vida do periférico.

 

 

 

 

 

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