A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado aprovou, nos dias 13 e 20 de agosto, dois Projetos de Lei que discutem sobre a exploração econômica em terras indígenas. As propostas seguem agora para análise no Plenário.
Os Projetos de Lei que tratam da exploração econômica das Terras Indígenas têm avançado no Congresso e despertado forte mobilização dos povos originários. O primeiro, o Projeto de Lei nº 6.050/2023, relatado pelo senador Marcio Bittar (União-AC), autoriza a extração de gás, petróleo e minérios. O segundo, o Projeto de Lei nº 1.331/2022, sob relatoria da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), prevê pesquisa e garimpo por terceiros em áreas delimitadas, desde que haja consentimento das comunidades.
E o PL 191/2020, enviado pelo Executivo, também permanece como referência no debate. O projeto abre a possibilidade de mineração, exploração de hidrocarbonetos e aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia em terras indígenas. Desde sua apresentação, tem sido alvo de duras críticas de entidades como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que apontam riscos de devastação ambiental, agravamento de conflitos territoriais e violação de direitos constitucionais. As críticas também estiveram presentes no próprio Senado, com manifestações dos senadores Augusta Brito (PT-CE) e Paulo Paim (PT-RS).
A legalização do garimpo e da mineração em terras indígenas é um tema que tem gerado intensa discussão no Senado. A polêmica é grande, especialmente considerando o levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que revelou a contaminação por mercúrio de moradores de nove aldeias Yanomami, em Roraima, e relacionou a atividade a casos de insegurança e violência.

"Os desastres, porém, são multidimensionais, e já atingiram níveis alarmantes em muitos territórios indígenas, como no Yanomami. Essas atividades econômicas exploratórias geram uma insegurança generalizada nas terras indígenas, marcada por conflitos, aumento de assassinatos e crimes em geral", diz Loren Lopes, advogada Indigenista especialista em direito fundiário do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), formada pela Universidade Federal de Minas Gerais.
A discussão sobre a legalização do garimpo e da mineração em terras indígenas esbarra na rejeição dos projetos, que enfrentam sérios obstáculos legais. O Artigo 231 da Constituição é claro ao reconhecer os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras. Além disso, a Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, exige a consulta livre, prévia e informada às comunidades antes que qualquer medida que possa afetar seus territórios seja implementada.
"As propostas tentam regulamentar uma matéria que constitucionalmente carece de Lei Complementar preexistente. Essa Lei Complementar não foi elaborada e, para que fosse aprovada, seria preciso um quórum de maioria absoluta dos membros da Câmara e do Senado. Além disso, as propostas não observam, em sua tramitação, o direito à consulta livre e prévia dos povos indígenas afetados, conforme dispõe a Convenção 169 da OIT", aponta a advogada.
O resultado dessa aceleração, segundo especialistas, é o alto risco jurídico de que as propostas, caso aprovadas, sejam declaradas inconstitucionais pelo STF por apresentarem vícios. "Infelizmente, nem sempre o que é juridicamente correto é, de fato, realizado. Quando se trata de interesses de grandes companhias, que exercem expressiva influência na política nacional, o político se sobressai ao jurídico, e o resultado são as transgressões aos direitos humanos que os povos indígenas já vivenciam hoje", completou.
A batalha pela garantia dos direitos indígenas diante do Marco Temporal
Em paralelo, segue em discussão o PL 490/2007, que incorpora a tese do marco temporal. A proposta restringe a demarcação de novas áreas às comunidades que estivessem em posse da terra na data da promulgação da Constituição, em 1988. Essa limitação é vista por juristas e lideranças indígenas como uma tentativa de inviabilizar processos de reconhecimento territorial, além de abrir brechas para a contestação de terras já homologadas.
O marco temporal, tese que limita a demarcação de terras indígenas às áreas ocupadas em 5 de outubro de 1988, divide juristas, parlamentares e movimentos sociais. Criada pela Advocacia-Geral da União em 2009, no caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, a interpretação voltou ao centro do debate nos últimos anos e hoje mobiliza disputas no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF).
Em 2023, a Câmara aprovou o Projeto de Lei 490/2007, transformado na Lei 14.701/2023 após a derrubada do veto presidencial. O governo argumentou que a norma contraria decisão do STF e restringe direitos originários. O Supremo, por sua vez, rejeitou a tese em setembro do mesmo ano, afirmando que a análise deve ser feita caso a caso. Pouco depois, suspendeu todos os processos sobre a constitucionalidade da lei até decisão definitiva.
Enquanto isso, organizações indígenas e a Funai denunciam aumento de ameaças e violência nos territórios. A presidenta Joenia Wapichana afirma que a lei legitima ocupações ilegais e enfraquece a proteção ambiental. Já parlamentares ligados ao agronegócio defendem o marco temporal como forma de dar segurança jurídica a proprietários rurais e evitar disputas indefinidas sobre terras.
No Congresso, senadores pressionam por novas medidas que reforcem a tese, mesmo após a decisão do STF. Lideranças indígenas e juristas sustentam que mudanças só poderiam ocorrer por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, e não por lei ordinária, o que mantém aceso o conflito institucional.

No centro da controvérsia estão duas visões: a que impõe limite cronológico às demarcações e a que reconhece o direito originário dos povos indígenas, sem restrição de data. O resultado desse embate definirá o futuro da política indigenista e o equilíbrio entre preservação ambiental e expansão agropecuária.
O debate sobre o marco temporal de demarcação de terras indígenas envolve também implicações ambientais. As terras indígenas estão entre as áreas mais preservadas do Brasil e funcionam como barreiras contra desmatamento, grilagem e exploração ilegal de recursos naturais. Levantamentos de entidades socioambientais apontam que esses territórios apresentam índices de conservação mais altos do que outras áreas protegidas e propriedades privadas.
A adoção do marco temporal pode impedir comunidades expulsas antes de 1988 de recuperar seus territórios. Nesse cenário, atividades agropecuárias, mineradoras e madeireiras permaneceriam em locais de ocupação tradicional, ampliando a pressão sobre florestas e ecossistemas estratégicos, como Amazônia e Cerrado.
Organizações ambientais afirmam que a medida enfraquece compromissos do Brasil em acordos internacionais, como o Acordo de Paris. A redução de áreas passíveis de demarcação tende a estimular a expansão de fronteiras agrícolas, o aumento do desmatamento e a perda de biodiversidade.
Para os povos indígenas, a questão é também cultural e social. Os territórios garantem práticas tradicionais de manejo sustentável, responsáveis pela preservação de florestas e pela manutenção de espécies.