Estresse, depressão e angústia consomem o cotidiano da população periférica na pandemia

‘Tá muito complicado, eu senti que desenvolvi várias questões psicológicas que não existiam antes da quarentena’, diz estudante prounista de jornalismo da PUC São Paulo.
por
Guilherme Dias e Inara Novaes
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30/06/2021 - 12h

Por Inara Novaes e Guilherme Dias

 

Em meio a crise sanitária  dos últimos tempos, quando milhares de vidas são interrompidas diariamente, muitas pessoas vivem sem escolha, fadadas ao risco, expostas à morte e presas ao velho estigma do trabalhador: aquele que é impedido de parar, em troca da subsistência. Não importa o contexto social, político e econômico, trabalhar permanece sempre como sua única escolha de vida.

Segundo o filósofo alemão Dietmar Kamper no artigo O Corpo Vivo, O Corpo Morto, criamos imagens sobre essas pessoas e criar imagens é matar corpos. Transformados em imagem, os corpos perdem sua “essência natural e histórica”, tornando-se desprovidos de profundidade e subjetividade. Aos olhos de muitos, são apenas máquinas orgânicas programadas para funcionar, pois outra opção não lhes é dada. Para a população periférica, trabalhar é uma constante fuga do desabrigo, da fome, das dívidas e da morte. 

Com esses corpos reduzidos a imagem, a sanidade mental dessa população é deixada de lado, ou melhor, não é pautada. Como relata a jornalista Thaís Cavalcante, em sua pesquisa  sobre a saúde mental dos moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, a mídia falha em pautar esse assunto. “Nunca li sobre morador de favela ter problemas de saúde mental. A pessoa não tem informações sobre o assunto. A naturalização existe”.

A imposição ao ‘novo normal’ implica numa perturbação psicossocial, promovendo novas tensões, angústias e temores. “O que tem tirado muito o sono” aumentaram consideravelmente, os medos se tornaram ainda mais pavorosos e sabendo disso, empresas e governos buscam lançar sobre a população o cabresto do empreendedorismo. Sem auxílios suficientes e o já comum abandono, trabalhadores e trabalhadoras acabam internalizando o papel de próprio chefe e mergulhando em um novo mar de incertezas. 

Confeiteira autônoma, Giovanna Vitória, 20, moradora do Capão Redondo, vive à margem das incertezas. “Eu só tenho essa renda e é dessa renda que eu consigo me manter, ajudar a minha família, ajudar o meu filho". Os receios somam-se à possibilidade de se contaminar e perder a única fonte de renda “e não conseguir fazer mais nada”.

Giovanna Vitória
Giovanna durante as produções de páscoa deste ano. Imagem: Acervo Pessoal

 

 

Mãe solteira, Giovanna faz parte de um grupo de mulheres no qual a  pandemia tem um peso ainda mais cruel. Cerca de 28 milhões de famílias são chefiadas por mães solteiras, segundo o último levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Sem outras pessoas para ajudar nas despesas de casa, essas mulheres não conseguem manter alimentação e higiene da sua família.

A romantização do sofrimento atinge muitas pessoas moradoras de comunidades e periferias. As políticas públicas não alcançam ou, na maioria das vezes, são ineficazes para muitas dessas famílias. Isto impacta na estabilidade psicológica, não é fácil falar de saúde mental sem considerar a crise financeira e outras preocupações que, ocasionalmente, esses grupos já lidam diariamente. Isso causa, inclusive, aumento do impacto emocional reverberando dentro dessa população a sensação de abandono. 

Para além dos fatores culturais que afastam a periferia de acessar esse serviço, o alto custo de sessões de terapia e a falta de profissionais da área no Sistema Único de Saúde (SUS) colaboram para a atual realidade. “Eu queria muito fazer terapia, mas tá muito fora da minha realidade atualmente, financeiramente falando, e práticas de autocuidado são coisas que nunca foram fomentadas na população periférica. É muito complicado, porque ocupa muito tempo e é um tempo que, às vezes, a gente poderia tá usando pra fazer outras coisas da nossa vida, tipo trabalhar”, afirma Kaio Chagas, 20, trabalhador autônomo, fundador do brechó "Veste Pencas".

 

Kaio Chagas
O trabalhador autônomo e estudante de jornalismo, Kaio Chagas. Imagem: Acervo Pessoal

 

 

O Portal Psicanálise Clínica confirmou em pesquisa de 2019,  que em média, as sessões de psicanálise variam de R$ 70 a R$400 por encontro.  Em geral, psicólogos solicitam  uma sessão com frequência semanal, porém com a intenção de garantia de faltas, alguns profissionais gostam de trabalhar com dois encontros por semana, ou seja, no final do mês os valores podem variar entre R$280 e R$ 3200. 

Mesmo com  a Internet ajudando na socialização de serviços voltados à saúde psíquica por meio de coletivos e movimentos que fornecem sessões gratuitas ou com preço acessível, o ambiente domiciliar de muitas famílias periféricas dificulta o andamento da sessão, pois, muitas das vezes,  a privacidade é escassa.  Sem um ambiente adequado, a terapia pode gerar tensões ainda maiores ao paciente.

Com a falta de acesso e o alto custo, moradores das margens sociais criam maneiras de superar os momentos de tristeza, ansiedade e depressão. “Olha, eu tento dormir, acho que é o que eu tenho feito bastante, quando posso. Quando não preciso fazer algum bico, algum trabalho para complementar a minha renda”, revela Kaio. 

Estar inerte e se deixar consumir pelo cotidiano pandêmico faz parte de muitas vidas em 2021. Com o número de mortes aumentando cada vez mais e a impossibilidade de respirar novos ares, estar estático se torna inevitável. Não há tempo, não há incentivo, muito menos meios governamentais que possibilitem a melhoria da vida psíquica da população periférica. Para o sistema e boa parte da mídia hegemônica, o trabalhador continuará como uma máquina orgânica sem sentimentos ou psicológico.

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