Por Inara Novaes e Guilherme Dias
Em meio a crise sanitária dos últimos tempos, quando milhares de vidas são interrompidas diariamente, muitas pessoas vivem sem escolha, fadadas ao risco, expostas à morte e presas ao velho estigma do trabalhador: aquele que é impedido de parar, em troca da subsistência. Não importa o contexto social, político e econômico, trabalhar permanece sempre como sua única escolha de vida.
Segundo o filósofo alemão Dietmar Kamper no artigo O Corpo Vivo, O Corpo Morto, criamos imagens sobre essas pessoas e criar imagens é matar corpos. Transformados em imagem, os corpos perdem sua “essência natural e histórica”, tornando-se desprovidos de profundidade e subjetividade. Aos olhos de muitos, são apenas máquinas orgânicas programadas para funcionar, pois outra opção não lhes é dada. Para a população periférica, trabalhar é uma constante fuga do desabrigo, da fome, das dívidas e da morte.
Com esses corpos reduzidos a imagem, a sanidade mental dessa população é deixada de lado, ou melhor, não é pautada. Como relata a jornalista Thaís Cavalcante, em sua pesquisa sobre a saúde mental dos moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, a mídia falha em pautar esse assunto. “Nunca li sobre morador de favela ter problemas de saúde mental. A pessoa não tem informações sobre o assunto. A naturalização existe”.
A imposição ao ‘novo normal’ implica numa perturbação psicossocial, promovendo novas tensões, angústias e temores. “O que tem tirado muito o sono” aumentaram consideravelmente, os medos se tornaram ainda mais pavorosos e sabendo disso, empresas e governos buscam lançar sobre a população o cabresto do empreendedorismo. Sem auxílios suficientes e o já comum abandono, trabalhadores e trabalhadoras acabam internalizando o papel de próprio chefe e mergulhando em um novo mar de incertezas.
Confeiteira autônoma, Giovanna Vitória, 20, moradora do Capão Redondo, vive à margem das incertezas. “Eu só tenho essa renda e é dessa renda que eu consigo me manter, ajudar a minha família, ajudar o meu filho". Os receios somam-se à possibilidade de se contaminar e perder a única fonte de renda “e não conseguir fazer mais nada”.
Mãe solteira, Giovanna faz parte de um grupo de mulheres no qual a pandemia tem um peso ainda mais cruel. Cerca de 28 milhões de famílias são chefiadas por mães solteiras, segundo o último levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Sem outras pessoas para ajudar nas despesas de casa, essas mulheres não conseguem manter alimentação e higiene da sua família.
A romantização do sofrimento atinge muitas pessoas moradoras de comunidades e periferias. As políticas públicas não alcançam ou, na maioria das vezes, são ineficazes para muitas dessas famílias. Isto impacta na estabilidade psicológica, não é fácil falar de saúde mental sem considerar a crise financeira e outras preocupações que, ocasionalmente, esses grupos já lidam diariamente. Isso causa, inclusive, aumento do impacto emocional reverberando dentro dessa população a sensação de abandono.
Para além dos fatores culturais que afastam a periferia de acessar esse serviço, o alto custo de sessões de terapia e a falta de profissionais da área no Sistema Único de Saúde (SUS) colaboram para a atual realidade. “Eu queria muito fazer terapia, mas tá muito fora da minha realidade atualmente, financeiramente falando, e práticas de autocuidado são coisas que nunca foram fomentadas na população periférica. É muito complicado, porque ocupa muito tempo e é um tempo que, às vezes, a gente poderia tá usando pra fazer outras coisas da nossa vida, tipo trabalhar”, afirma Kaio Chagas, 20, trabalhador autônomo, fundador do brechó "Veste Pencas".
O Portal Psicanálise Clínica confirmou em pesquisa de 2019, que em média, as sessões de psicanálise variam de R$ 70 a R$400 por encontro. Em geral, psicólogos solicitam uma sessão com frequência semanal, porém com a intenção de garantia de faltas, alguns profissionais gostam de trabalhar com dois encontros por semana, ou seja, no final do mês os valores podem variar entre R$280 e R$ 3200.
Mesmo com a Internet ajudando na socialização de serviços voltados à saúde psíquica por meio de coletivos e movimentos que fornecem sessões gratuitas ou com preço acessível, o ambiente domiciliar de muitas famílias periféricas dificulta o andamento da sessão, pois, muitas das vezes, a privacidade é escassa. Sem um ambiente adequado, a terapia pode gerar tensões ainda maiores ao paciente.
Com a falta de acesso e o alto custo, moradores das margens sociais criam maneiras de superar os momentos de tristeza, ansiedade e depressão. “Olha, eu tento dormir, acho que é o que eu tenho feito bastante, quando posso. Quando não preciso fazer algum bico, algum trabalho para complementar a minha renda”, revela Kaio.
Estar inerte e se deixar consumir pelo cotidiano pandêmico faz parte de muitas vidas em 2021. Com o número de mortes aumentando cada vez mais e a impossibilidade de respirar novos ares, estar estático se torna inevitável. Não há tempo, não há incentivo, muito menos meios governamentais que possibilitem a melhoria da vida psíquica da população periférica. Para o sistema e boa parte da mídia hegemônica, o trabalhador continuará como uma máquina orgânica sem sentimentos ou psicológico.