Entre a aldeia e a cidade, indígenas constroem novas formas de viver

Comunidades multiétnicas lutam por território, cultura e dignidade em meio à urbanização e à lentidão da demarcação de terras
por
Victória Ignez
Isadora Cobra
Amanda Mores
|
23/10/2025 - 12h

Mais de 1.600 indígenas vivem atualmente no município de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma parte significativa desses grupos pertencem às etnias Pankararé, Pankararu e Tupi-Guarani, instaladas principalmente em áreas periféricas próximas à Serra da Cantareira, onde enfrentam um cenário marcado por precariedade estrutural e barreiras persistentes de acesso a direitos básicos garantidos pela Constituição, como saúde, educação e território. A presença indígena em áreas urbanizadas, embora consolidada historicamente, continua sendo tratada pelo poder público de forma marginal, com políticas fragmentadas e pouco efetivas.

O descaso do Estado diante das demandas por reconhecimento e proteção territorial é apontado pelos povos indígenas como causa estrutural da situação atual. Para o mestre em Direito Marcelo Cobra, a Constituição de 1988 é clara ao garantir o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União demarcá-las e protegê-las. “Na teoria, a lei brasileira é uma das mais avançadas do mundo no reconhecimento dos direitos indígenas”, explica. “O problema é que, na prática, o Estado não cumpre o que determina a própria Constituição. A demora nas demarcações e a falta de políticas estruturais colocam essas comunidades em permanente vulnerabilidade.”

Embora a Constituição assegure o direito originário dos indígenas sobre suas terras tradicionais, o processo de demarcação nos grandes centros urbanos permanece paralisado ou sequer iniciado, colocando essas comunidades em constante vulnerabilidade fundiária. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) reconhece formalmente a presença indígena em Guarulhos, mas a ausência de conclu­são de processos territoriais dificulta a implementação de políticas públicas específicas.

No espaço onde antes funcionava um lixão, os indígenas agora trabalham na recuperação da mata e das nascentes. Mas o esforço de reflorestar, educar e manter viva a cultura ocorre sem infraestrutura básica, sem posto de saúde, escola e saneamento. Apesar do reconhecimento da Funai, o processo de demarcação segue parado, travado por questões políticas e pela burocracia pública.

Pedro Pankararé, um dos responsáveis pela comunidade, explica que a chegada de seu povo à região foi motivada pela necessidade. “A gente veio para cá devido à dificuldade do território, em busca de trabalho e estudo. Já faz mais de 20 anos que estamos na cidade, lutando por uma terra. Conseguimos por meio de uma retomada, e agora, no dia 27 de outubro, a aldeia completa oito anos.”

foto: reprodução instagram @pedro_pankarare


O território, segundo ele, é hoje uma área de proteção permanente que os próprios moradores tentam recuperar e preservar. “Nosso objetivo é fortalecer a cultura indígena e proteger a mata. São mais de 532 hectares e 17 nascentes. Antes, isso aqui era um lixão, jogavam lixo hospitalar e eletrônico. Hoje, o que tentamos fazer é limpar e reflorestar a área.”

A convivência com a cidade é vista com ambiguidade. Estar próximo do meio urbano facilita o acesso e o diálogo com a população, mas também ameaça a preservação da natureza. “É bom e ruim. Quando a comunidade começou a descer, tivemos que subir para barrar, porque estavam destruindo a mata. As pessoas precisam de moradia, mas acabam agredindo o território. E isso afeta tudo: o meio ambiente, a saúde, a educação e até o respeito à mãe Terra.”

A aldeia multiétnica abriga diferentes povos, o que fortalece a diversidade cultural. “Tem Pankararé, Pankararu, Tupi-Guarani, Caimbé, Guajajara, Pataxó e até Terena. A gente recebe escolas e faculdades para mostrar o que é a cultura indígena de verdade, não o que o livro conta”, afirma Pedro.

Mas, apesar de iniciativas como essas, a falta de apoio institucional e de políticas públicas dificulta a manutenção da vida no território. “Não temos posto de saúde, escola indígena nem saneamento básico. A Funai reconheceu a terra, mas a demarcação não anda. O governo estadual tem feito algumas melhorias, o federal tenta ajudar, mas tudo depende do Congresso. A gente conseguiu uma emenda para construir o posto de saúde, mas o governo atual travou o projeto.”

A situação revela o descompasso entre o que a lei assegura e o que realmente se concretiza nas aldeias urbanas. Mesmo com o direito garantido, as famílias seguem sem acesso a serviços básicos. “Hoje, temos um recurso para o posto, mas não temos vontade política. A saúde é um desafio. A escola indígena já tem documentos prontos, mas a aprovação demora. O saneamento está em negociação, mas nada é certo. Tudo é muito lento”, desabafa.

Mesmo cercados pela cidade, os povos da aldeia seguem recriando um modo de vida coletivo, que se apoia na memória e na terra. “Hoje, a gente conseguiu o que sempre quis: um espaço para nossos rituais, nossas tradições. Esse território é de fortalecimento”, diz Pedro. “A gente planta árvores, ensina as crianças, recebe escolas, protege as nascentes. A terra é a nossa mãe, e cuidar dela é cuidar da gente.”

Entre a urbanização e a mata, a aldeia multiétnica de Guarulhos resiste como símbolo de força e esperança. O território, que renasceu sobre um antigo lixão, hoje floresce como espaço de aprendizado e reconstrução. Entre a aldeia e a cidade, há mais do que um conflito territorial, há uma luta por existência, por futuro e por reconhecimento.